Reflexões Autogestionárias 04:
LULA E A LUTA REVOLUCIONÁRIA
Matheus Almeida
A análise da realidade
social é um processo valorativo, que tanto carrega valor quanto produz
valoração. Tais valores geralmente são apresentados em lados opostos, que se
opõem entre si, o que seria reflexo da oposição política entre seus defensores.
A consequência mental imediata deste tipo de raciocínio é uma espécie de
maniqueísmo político, onde, de um lado, haveria os conservadores (defensores
dos valores e políticas conservadoras), e do outro, os progressistas (por sua
vez, defensores dos valores e políticas progressistas).
Acontece, porém, que
esta polarização apresentada é um fenômeno ilusório, colocando-se como se
pudesse cindir e resumir todo e qualquer posicionamento político existente a
esta dicotomia (variando-se, no máximo, distinções entre moderados ou
extremados em cada lado). O que esta dicotomia esconde é que ela expressa duas
faces do capital, dois lados de uma mesma moeda. Conservadores e progressistas
são, política ou valorativamente, variações de posições no interior do
capitalismo. A história de Lula e do PT, mais do que nunca, é expressão exemplar
desta afirmativa. Uma reflexão mais ampla neste sentido já seria o suficiente
para esclarecer a tragédia do petismo.
O princípio básico da
dominação de uma classe sobre as outras é apresentar seus interesses
particulares como se fossem universais. Obtendo sucesso nesta empreitada, tal
classe consegue apoio para realizar sua dominação, através da conquista do
poder do Estado e do modo de produção dominante. A lógica dos partidos
políticos não é tão diferente. Cada partido se esforça para apresentar e
convencer a maioria da população de que seus interesses particulares são
universais. Isto é fundamental para a conquista e manutenção do poder, seja
através de uma via democrática ou ditatorial.
No entanto, o interesse particular de nenhum partido (e todos os partidos
possuem interesses próprios) é universal, mas são interesses específicos de
classe. Melhor dizendo, são interesses particulares de uma classe ou frações de
classe, que disputam entre si pelo poder. As disputas entre partidos são
disputas interburocráticas, e não luta entre classes. Cada partido político
busca se distinguir e se destacar na disputa frente aos demais partidos, e
nesta busca reforça suas diferenças (de coloração, de valores, de candidatos,
de programas etc.) e podem chegar até mesmo a se digladiarem em determinados
momentos (eleitorais ou pré-eleitorais, em geral).
O barulho que fazem em
suas disputas internas, por vezes, soa tão alto e voraz que nos convence de que
são inimigos de classe batalhando ou representantes de sociedades radicalmente
distintas em conflito. Não o são, e jamais serão. A marketização das distinções
entre partidos conduz nossos olhares a não ver as radicais similitudes entre
eles, que são determinadas por seu caráter de classe comum (a burocracia, que
no caso dos partidos da burguesia é subordinada, e que no caso dos partidos de
outras classes é soberana).
Todo partido político
almeja o poder do Estado (que nunca é demais lembrar, é um aparato do capital).
Para conquistar o poder do Estado, o partido deve fazer passar seus interesses
particulares como universais. Neste objetivo, deve convencer tanto as classes
trabalhadoras (sejam trabalhadores manuais ou intelectuais, que juntos são a
maioria da população), como principalmente a classe dominante no capitalismo: a
burguesia.
O poder da burocracia
não se exerce sem a anuência da burguesia. Isto porque os burocratas são seus
funcionários, são a principal classe auxiliar da burguesia.
Os maiores extratos da burocracia governamental não são eleitos (ou postos à
força com um golpe de Estado) sem o apoio da burguesia. Com exceção de
situações de tentativas de revoluções burocráticas ou de processos eleitorais
conturbados, as condições materiais de elevação de um burocrata partidário a
burocrata governamental são o apoio político e financeiro da burguesia. O
tamanho da campanha de um candidato, o discurso que é aceito, os acordos com
empresas, os conchavos político-partidários, o programa de governo, a recepção
do capital comunicacional, entre diversos outros elementos são determinados
pela relação de maior ou menor aceitação ou rejeição que tem a burguesia com
relação a uma candidatura a burocrata estatal. Não há antagonismo entre o
Estado (ele como um todo ou seus representantes) e a burguesia: aquele deriva
da dominação desta, e perpetua tal dominação.
Assim, as disputas
fratricidas entre os partidos e seus representantes exaltam suas diferenças
conjunturais, mas ocultam suas semelhanças essenciais: são duas faces
(conservadores ou progressistas) do poder político capitalista. Os distintos
projetos entre um partido e outro são elegidos a partir da necessidade
histórica que o capitalismo tem para determinado momento de um determinado
país. Estas necessidades históricas, portanto, é que configuram a forma estatal
de determinada época e, consequentemente, as formas governamentais que ali se
estabelecem. A forma estatal do período histórico do capitalismo que vivemos
(desde a década de 1980) é o neoliberalismo. Todos os governos de distintos
partidos que se estabeleceram no Estado neste período produziram variações
governamentais sob o/do neoliberalismo à brasileira. E com os governos do PT
não foi diferente.
A longevidade dos
governos petistas se deveu à combinação entre neoliberalismo e neopopulismo,
que gerou relativa estabilidade política e econômica durante quase uma década
(2003-2013), mas que se esgotou em seus próprios limites. Foi com o esgotamento
deste formato governamental, expresso, por um lado, no prejuízo crescente à
acumulação ampliada de capital (que desembocou na crise pecuniária), e por
outro lado, na dificuldade cada vez maior em controlar e amortecer os conflitos
sociais (evidenciada em Junho de 2013), que a paciência e o apoio da classe
dominante ao PT cedeu às iniciativas (frustradas enquanto vivíamos a
"estabilidade" dos primeiros anos de governo de Lula) organizadas do
antipetismo.
O crescimento da força
do antipetismo foi proporcional ao decrescimento da popularidade que as
políticas petistas passaram a adquirir. Lula e Dilma avançaram uma agenda
neoliberal no Brasil como nunca antes na história desse país. Baseados na
ideologia da conciliação de classes, tentaram governar para todos, para uns
mais que para outros. Os petistas carregam afixado na memória os números que
principalmente os governos Lula tiveram, que representaram uma tentativa de
solução neoliberal para o problema neoliberal de miséria extremada levado a
cabo pelos governos precedentes.
Se a insustentável
miséria material de muitos foi reduzida durante o governo petista, que se
iniciou em uma etapa de avanço e expansão da acumulação capitalista (o que
gerou maior "riqueza nacional"), as miseráveis consequências do
neoliberalismo igualmente foram garantidas. As mesmas políticas petistas,
somadas à acumulação de capital do momento, que geraram a elevação de consumo e
renda de parte da população também geraram o maior fosso entre a riqueza
concentrada nos 1% mais rico da população e a riqueza que todo o restante do
país possuía. Ninguém se beneficiou mais das políticas petistas que os mais
ricos.
Em meio à histeria
coletiva que se instaura entre os progressistas neste momento, de que estamos
prestes a viver o fim dos tempos, de que a ditadura e o fascismo de repente
apareceram com força por aí, pensar a gênese deste avanço conservador nos impõe
ter que ver as próprias políticas petistas na criação do monstro (e de seu
espantalho) denunciado. Lula, Dilma e o PT empurraram medidas que nem mesmo a
ditadura militar foi capaz de executar, como a construção da Usina Hidrelétrica
de Belo Monte. Aliás, para os indígenas, os últimos governos petistas
acarretaram, por conchavos e conivências, no acirramento dos conflitos por
terras de forma exponencial no Brasil. Desde a ditadura, nunca havia se
demarcado tão poucas terras indígenas como no governo Dilma.
O neopopulismo petista
gerou a cooptação e o aparelhamento de diversas organizações dos movimentos
sociais no Estado, reduzindo-as a correias de transmissão do governo. A
capacidade de mobilização e enfrentamento dos trabalhadores foi diretamente
impactada pela subordinação de suas atividades aos interesses do partido
dirigente das organizações de categorias e de seu vínculo com o governo. A
desarticulação do movimento operário se fez evidente, pois não interessavam
mais as greves gerais (menos ainda aquelas autônomas e selvagens), mas tão
somente as "mesas de negociação" entre seus
"representantes" e o Estado.
Os governos do PT, ao
seguirem a cartilha neoliberal, lançaram para os pobres, os trabalhadores, os
movimentos e militantes as armadilhas que seriam futuramente utilizadas contra
eles mesmos: o controle e a repressão do Estado Penal. Aumenta-se a vigilância,
declara-se que os seus opositores mais radicais são terroristas, eleva-se os
poderes do judiciário, fortalece-se os aparatos militares, negocia-se
intimamente com os conservadores de toda ordem. Os rumos desta história foram
traçados com as diretrizes progressistas.
A expansão do genocídio negro, a militarização da vida cotidiana nas favelas, o
avanço do encarceramento em massa, a criminalização dos movimentos sociais e
militantes divergentes são alguns dos elementos do pan-penalismo que os
governos petistas reforçaram no Brasil. Nenhuma destas práticas ameaçava a
democracia – pensavam corretamente os petistas, pois não dificultavam o
andamento da democracia eleitoral burguesa, aquela que desperta libido aos
partidos.
Durante os anos dos
governos petistas, as lutas de classes se expressaram aí, no avanço do Estado e
do capital contra as classes trabalhadoras e grupos oprimidos e nas suas
reações, e não nas querelas dos partidos. As querelas entre os partidos, como
sempre, tinham como efeito principal retirar o foco da luta de classes
existente durante o governo progressista do PT deslocando-o (ideologicamente)
para os embates partidários.
Lula fortaleceu as instituições capitalistas, renovou a credibilidade em baixa
dos aparatos estatais, e deu início ao processo de enfraquecimento e
desarticulação das lutas sociais autônomas. Os resultados destas medidas foram
o fortalecimento do bloco dominante, das forças conservadoras, e o isolamento
do próprio petismo de suas antigas bases. A dinâmica da institucionalidade
burguesa nunca foi controlada pelo PT, apesar destes partidários se iludirem
com tal crença, ela apenas adotou este partido para se legitimar e se
revigorar.
Quando o PT passou a não
interessar mais à classe dominante, a própria institucionalidade burguesa
(arvorada pelo PT) foi utilizada para expurgar tal partido do poder executivo,
através do impeachment. Logo, diferente do que falam os progressistas
defensores da ideia de que houve um "golpe" contra Dilma, não foi
preciso a ruptura da própria dinâmica da institucionalidade burguesa para
retirar o PT da presidência, o que é uma prática frequente do capitalismo em
tantas outras ocasiões pelo mundo (e mesmo no Brasil, como foi com Fernando
Collor de Melo).
Lula acreditou nas
instituições porque o PT é parte das instituições, segue a lógica
capitalista-burocrática, e Lula era um de seus grandes dirigentes
(consecutivamente burocrata sindical, partidário e estatal). Daí suas medidas
para empoderar os aparatos estatais. Pelo discurso petista, parece que apenas
agora descobriram que os militares e o judiciário estão a serviço do poder.
Ora, eles já não estavam antes, durante a própria vigência do petismo? A
diferença da crença petista para a realidade é que estes aparatos não estão a
serviço do poder do partido governante (que no caso, era o PT), mas sim do
poder do capital, que é a relação social desenvolvida pela burguesia e que
determina a dinâmica do Estado.
Isto é explicitado
quando observamos que cinco dos seis ministros do Supremo Tribunal Federal que
votaram a favor da prisão de Lula foram indicados a estes cargos pelos próprios
governos petistas. O feitiço se volta contra o feiticeiro, que o conjura
achando poder controlá-lo. O PT abriu mão do enfrentamento até quando poderia
convencer a tal ação os ingênuos defensores de uma suposta "guinada à
esquerda" deste partido, em diversas ocasiões, inclusive na derradeira
prisão de Lula.
Em verdade, foi
exatamente o contrário o que ocorreu: enquanto as viúvas de Lula choravam a sua
prisão durante o seu comício, e vários falavam para "convocar uma greve
geral", os dirigentes petistas (e de suas organizações correias de
transmissão: CUT, MST, UNE e similares) diziam que era preciso "acumular
forças", o que é outro nome para dizer não ao enfrentamento e reafirmar as
querelas interburocráticas (entre partidos, e entre dirigentes partidários e
burocracia judicial). O espanto não é tal resposta dos dirigentes petistas e
para-petistas, mas sim a surpresa de quem acreditava que a resposta poderia ser
diferente.
Lula foi preso. O PT
está em derrocada final. A esquerda em migalhas. O progressismo no Brasil, tal
como em outras partes do mundo, teve seus dias de glória enquanto havia
crescimento da acumulação de capital, mas tão logo este reduziu, viu-se
consecutivamente enfraquecido pelo conservadorismo em ascensão. Os partidos,
movimentos e intelectuais progressistas se desesperam, todas as
"conquistas" (sic) parecem estar indo água abaixo. Se um novo partido
de esquerda não chegar ao poder do Estado será o fim, proclamam. Os interesses
particulares são anunciados, outra vez, como universais, esperando algum
retorno amplo das "massas". Nenhuma luta a favor dos trabalhadores
virá deste espetáculo fratricida.
Do ponto de vista dos
trabalhadores, nenhuma mudança substancial haverá entre os governos neoliberais
de esquerda fracassados e os governos neoliberais de direita em ascensão. O
saldo do Estado para estas classes será o mesmo: austeridade, exploração,
dominação, controle, repressão, opressão. O petismo cumpriu o interesse do
capital para o Brasil, foi descartado por seus ex-apoiadores, e agora o capital
fará cumprir seus interesses com outros partidos. A única possibilidade de se
evitar isto não é a ressurreição do moribundo petismo, mas a afirmação,
consolidação e generalização da força política radicalmente distinta: a revolucionária.
O antagonismo
fundamental existente no Brasil e no mundo não é entre conservadores e
progressistas, mas sim entre proletariado (a classe revolucionária da era
capitalista, onde reside o ponto de vista revolucionário) e burguesia (a classe
dominante, que juntamente com suas classes auxiliares podem se alternar entre
conservadores ou progressistas). A condição de possibilidade de impedir o
avanço do capital, à esquerda ou à direita, não é o endosso a algum dos lados
das querelas de partidos, mas o reforço da posição e perspectiva
revolucionárias diante das lutas de classes em curso no país. Para os
trabalhadores, apenas a auto-organização, a radicalização das suas lutas, com a
autogestão dos locais de trabalho, de estudo e de moradia, no enfrentamento ao
Estado e demais organizações burocráticas (como os sindicatos e partidos
políticos), assim como na negação do capitalismo, é que podem representar uma
resposta autêntica destas classes trabalhadoras frente às artimanhas da
dominação e exploração capitalistas.
Para os revolucionários, Lula é um inimigo de classe tragado pela dinâmica
institucional burguesa. Outros inimigos de classe virão, e serão dispensados no
interesse do capital, para dar lugar a novos inimigos. Se preciso, formas
governamentais mais democráticas ou ditatoriais serão alternadamente elegidas
pela burguesia. Em todas elas, a luta revolucionária encontrará obstáculos e
necessitará romper com as ilusões da conciliação (outro nome para dominação) de
classe e da redoma eleitoral dos partidos. Nem a via dura, nem a via suave da
dominação pode interessar: a abolição do Estado e do capital é a única
resposta, na conjuntura e para além dela, radical e realista.
"O povo, contudo, não terá a vida mais fácil quando o porrete que o
espancar se chamar popular" (Bakunin)
"Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia
da liberdade: no dia do seu enterro" (Marx)