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quarta-feira, 25 de abril de 2018

A Luta de Classes na Nicarágua [Textos e debates]

Textos e Debates




A Luta de Classes na Nicarágua

Carlos Henrique Marques

A situação na Nicarágua é interessante para analisarmos vários aspectos que envolvem a luta de classes nesse país. As manifestações, o governo e as políticas estatais, os discursos ideológicos, são alguns destes aspectos.

As manifestações que vêm ocorrendo na Nicarágua tiveram como estopim a reforma retrógrada[1] da previdência apresentada pelo presidente Daniel Ortega. Esta reforma afetava os trabalhadores tanto na atualidade, pois os ativos teriam que pagar mais e os aposentados receber 5% menos, quando no futuro, pois a aposentadoria seria protelada e mais tardia.

Isso fez eclodir, desde o dia 18 de abril, diversas manifestações, sendo que os estudantes universitários formavam o contingente mais ativista no seu interior. As manifestações foram duramente reprimidas e alguns falam em 9 mortos e outros em 25. A repressão violenta gerou novas manifestações e ampliação das reivindicações. Emissoras de Rádio e Televisão foram atacadas pelos manifestantes e o governo censurou canais de televisão. Um setor da população passa a pedir a deposição de Daniel Ortega[2].

Assim, a sociedade nicaraguense era palco de insatisfações com o governo, suas políticas, a situação geral do país e as formas de resistência eram cotidianas e localizadas, sem maior alcance coletivo e radicalidade. O decreto do governo sobre a reforma previdenciária foi o estopim para as manifestações e essas, uma vez ocorrendo, mostram a força da luta dos estudantes e trabalhadores, gerando mais reivindicações, mais reflexões, mais manifestações.

É interessante observar que o governo de Daniel Ortega tem uma origem que é a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), grupo de origem guerrilheira e de extrema-esquerda. Foi eleito em 1984 e, após perder três eleições, foi eleito novamente em 2006 e 2016, sob acusações de compra de votos, alianças “perigosas” (capitalistas), etc. As políticas adotadas por Daniel Ortega são neoliberais, mostrando, novamente, o caráter da esquerda como subordinada ao capital e que pode ser integrada, temporariamente, no bloco dominante.

A reforma previdenciária, recomendação do FMI (Fundo Monetário Internacional), é exemplo dessas políticas neoliberais e foi o detonador das manifestações, convocadas por estudantes e aposentados. Outro elemento que mostra a verdadeira face do governo de Daniel Ortega é a violência estatal na repressão aos manifestantes, deixando vários mortos, mais de 120 presos, 50 pessoas feridas, etc. Assim, na dinâmica das lutas de classes, as políticas que afetam os trabalhadores geram luta e resistência e essas, por sua vez, geram repressão estatal e pode gerar o recuo ou avanço das manifestações. No caso nicaraguense, ocorreu o avanço das lutas dos estudantes e trabalhadores.

Nesse contexto, o governo nicaraguense visando conter as manifestações, recua em relação à reforma retrógrada da previdência e busca incriminar os manifestantes, através de um discurso legitimador da repressão. O governo acusa parte dos manifestantes de serem compostos por “gangues” (nas manifestações de 2013 no Brasil se usou o termo “vandalismo”) e distintos dos “pacíficos” para assim justificar o aparato repressivo e seu uso. A vice-presidente, Rosario Murilo, afirmou que as manifestações são dirigidas por “grupos minúsculos”, de “almas pequenas, tóxicas, repletas de ódio”. O seu ataque aos manifestantes beira ao grotesco: “Estas circunstâncias dolorosas manipuladas, esta corrupção de pensamentos e intenções, estes corações doentes, carregados de ódio e pervertidos, não podem semear o caos e negar aos nicaraguenses a tranquilidade que graças a Deus temos”[3].

A luta de classes na Nicarágua ultrapassou as  lutas espontâneas cotidianas para lutas mais amplas e autônomas. Nesse processo, pode haver uma maior politização da sociedade nicaraguense e o crescimento do bloco revolucionário ao lado de organizações autárquicas[4] dos trabalhadores, o que seria fundamental para as lutas operárias posteriores. Isso, no entanto, também depende da luta cultural na sociedade nicaraguense, o que pressupõe que o bloco revolucionário deve intensificar a propaganda generalizada, o incentivo para formação de organizações autárquicas, superar suas ambiguidades internas, etc. Sem dúvida, isso também vai depender das ações do bloco dominante, atualmente enfraquecido, e do bloco progressista, atualmente desgastado, mas que podem fazer como no caso brasileiro: deslocar das questões sociais que interferem na acumulação de capital e repartição da renda nacional (reformas retrógradas, por exemplo) para outras questões (reinvindicações de grupos sociais, mudanças culturais, etc.) ou para simples “troca de governo”. É nesse contexto que ocorre a luta de classes na Nicarágua e que a luta deve se dar e esperamos que não ocorra um retrocesso como no caso brasileiro, que impediu a sedimentação das lutas expressas em 2013 e possibilitou uma retomada da “normalidade” e desvio da luta de classes para outros processos despolitizadores.



[1] Uma reforma retrógrada, no atual contexto do capitalismo, é uma reforma neoliberal que visa aprofundar o neoliberalismo e retroceder no que se refere aos interesses dos trabalhadores.
[4] Organizações autárquicas são formas de auto-organização e são distintas das organizações burocráticas, como partidos, sindicatos, estado, etc.


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