Textos e Debates
A
Luta de Classes na Nicarágua
Carlos
Henrique Marques
A situação na
Nicarágua é interessante para analisarmos vários aspectos que envolvem a luta
de classes nesse país. As manifestações, o governo e as políticas estatais, os
discursos ideológicos, são alguns destes aspectos.
As manifestações que
vêm ocorrendo na Nicarágua tiveram como estopim a reforma retrógrada[1] da previdência apresentada pelo presidente Daniel
Ortega. Esta reforma afetava os trabalhadores tanto na atualidade, pois os
ativos teriam que pagar mais e os aposentados receber 5% menos, quando no
futuro, pois a aposentadoria seria protelada e mais tardia.
Isso fez eclodir,
desde o dia 18 de abril, diversas manifestações, sendo que os estudantes
universitários formavam o contingente mais ativista no seu interior. As
manifestações foram duramente reprimidas e alguns falam em 9 mortos e outros em
25. A repressão violenta gerou novas manifestações e ampliação das
reivindicações. Emissoras de Rádio e Televisão foram atacadas pelos
manifestantes e o governo censurou canais de televisão. Um setor da população
passa a pedir a deposição de Daniel Ortega[2].
Assim, a sociedade
nicaraguense era palco de insatisfações com o governo, suas políticas, a
situação geral do país e as formas de resistência eram cotidianas e
localizadas, sem maior alcance coletivo e radicalidade. O decreto do governo
sobre a reforma previdenciária foi o estopim para as manifestações e essas, uma
vez ocorrendo, mostram a força da luta dos estudantes e trabalhadores, gerando
mais reivindicações, mais reflexões, mais manifestações.
É interessante
observar que o governo de Daniel Ortega tem uma origem que é a FSLN (Frente
Sandinista de Libertação Nacional), grupo de origem guerrilheira e de
extrema-esquerda. Foi eleito em 1984 e, após perder três eleições, foi eleito
novamente em 2006 e 2016, sob acusações de compra de votos, alianças
“perigosas” (capitalistas), etc. As políticas adotadas por Daniel Ortega são
neoliberais, mostrando, novamente, o caráter da esquerda como subordinada ao
capital e que pode ser integrada, temporariamente, no bloco dominante.
A reforma
previdenciária, recomendação do FMI (Fundo Monetário Internacional), é exemplo
dessas políticas neoliberais e foi o detonador das manifestações, convocadas
por estudantes e aposentados. Outro elemento que mostra a verdadeira face do
governo de Daniel Ortega é a violência estatal na repressão aos manifestantes,
deixando vários mortos, mais de 120 presos, 50 pessoas feridas, etc. Assim, na
dinâmica das lutas de classes, as políticas que afetam os trabalhadores geram
luta e resistência e essas, por sua vez, geram repressão estatal e pode gerar o
recuo ou avanço das manifestações. No caso nicaraguense, ocorreu o avanço das
lutas dos estudantes e trabalhadores.
Nesse contexto, o
governo nicaraguense visando conter as manifestações, recua em relação à
reforma retrógrada da previdência e busca incriminar os manifestantes, através
de um discurso legitimador da repressão. O governo acusa parte dos
manifestantes de serem compostos por “gangues” (nas manifestações de 2013 no
Brasil se usou o termo “vandalismo”) e distintos dos “pacíficos” para assim
justificar o aparato repressivo e seu uso. A vice-presidente, Rosario Murilo,
afirmou que as manifestações são dirigidas por “grupos minúsculos”, de “almas
pequenas, tóxicas, repletas de ódio”. O seu ataque aos manifestantes beira ao
grotesco: “Estas circunstâncias dolorosas manipuladas, esta corrupção de
pensamentos e intenções, estes corações doentes, carregados de ódio e
pervertidos, não podem semear o caos e negar aos nicaraguenses a tranquilidade
que graças a Deus temos”[3].
A luta de classes na Nicarágua
ultrapassou as lutas espontâneas cotidianas para lutas mais amplas e
autônomas. Nesse processo, pode haver uma maior politização da sociedade
nicaraguense e o crescimento do bloco revolucionário ao lado de organizações
autárquicas[4] dos trabalhadores, o que seria
fundamental para as lutas operárias posteriores. Isso, no entanto, também
depende da luta cultural na sociedade nicaraguense, o que pressupõe que o bloco
revolucionário deve intensificar a propaganda generalizada, o incentivo para
formação de organizações autárquicas, superar suas ambiguidades internas, etc.
Sem dúvida, isso também vai depender das ações do bloco dominante, atualmente
enfraquecido, e do bloco progressista, atualmente desgastado, mas que podem
fazer como no caso brasileiro: deslocar das questões sociais que interferem na
acumulação de capital e repartição da renda nacional (reformas retrógradas, por
exemplo) para outras questões (reinvindicações de grupos sociais, mudanças
culturais, etc.) ou para simples “troca de governo”. É nesse contexto que
ocorre a luta de classes na Nicarágua e que a luta deve se dar e esperamos que
não ocorra um retrocesso como no caso brasileiro, que impediu a sedimentação
das lutas expressas em 2013 e possibilitou uma retomada da “normalidade” e
desvio da luta de classes para outros processos despolitizadores.
[1] Uma reforma retrógrada, no atual contexto do
capitalismo, é uma reforma neoliberal que visa aprofundar o neoliberalismo e
retroceder no que se refere aos interesses dos trabalhadores.
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-04/manifestacao-historica-pede-saida-de-ortega-do-governo-da-nicaragua
[3] https://g1.globo.com/mundo/noticia/protesto-contra-reforma-da-previdencia-deixa-tres-mortos-na-nicaragua.ghtml
[4] Organizações autárquicas são formas de
auto-organização e são distintas das organizações burocráticas, como partidos,
sindicatos, estado, etc.
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