O GOVERNO BOLSONARO, A PANDEMIA E O DUPLIPENSAR
Lucas Maia
O clássico 1984 de
George Orwell publicado em 1949 apresenta um futuro atordoante. Uma sociedade
autoritária, burocrática, na qual nenhum tipo de liberdade é possível,
principalmente a de pensamento. Pensar além do que é permitido pelo poder
instituído é o maior dos crimes, a “Crimideia”. Esta sociedade autoritária,
cujo poder aparentemente eterno e imbatível do Partido único e seu Grande Irmão
é possível devido a três elementos: “novilíngua”, “controle do passado” e
“duplipensar”.
Vou me ater somente ao
último estratagema do poder para refletir sobre a postura do governo Bolsonaro diante
do problema da pandemia relacionada ao coronavírus. Antes de continuar, há que
se entender o que é o duplipensar. Orwell assim o define:
Saber e não saber, ter consciência
de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas,
defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e
ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade
em nome da moralidade (...). Até para compreender a palavra duplipensar era
necessário usar o duplipensar (ORWELL, George. 1984).
É possível uma tal forma
de pensar? Este raciocínio de Orwell só é possível na sociedade por ele
imaginada, com aquele futuro sombrio e autoritário? Ou será que o duplipensar
está tão entranhado em nosso cotidiano, que nós o usamos ou o vemos sendo usado
a todo momento e nem o percebemos?
Já estamos em 2020, 36
anos depois de 1984. Talvez a distopia já se tenha concretizado e estamos tão
enterrados nela que nem ao menos conseguimos perceber que a novilíngua é
reinventada a todo o momento. Veja o que fez o capitalismo contemporâneo, com
seu arsenal de novas palavras: “empreendedorismo”, “gestão de carreira”,
“inteligência emocional”... E o controle do passado? Já acontece? Os
revisionismos históricos estão aí para provar: holocausto não existiu, nazismo
era de esquerda, ditadura militar no Brasil não existiu ou não foi assim tão
violenta etc.
E o duplipensar? É real?
É possível afirmar coisas contraditórias, uma negando a outra e mesmo assim
acreditar que ambas são verdadeiras? É possível mentir, acreditando realmente dizer
a verdade? É possível ser ilógico usando a lógica? Imoral defendendo a
moralidade?
Parece-me que a atitude
do governo federal, em sua disputa política com os governos estaduais, setores
do capital comunicacional (Rede Globo, Jornal Folha de São Paulo etc.), o bloco
progressista em peso (partidos de esquerda, sindicatos, alguns setores da intelectualidade
etc.) utiliza exatamente o duplipensar. A distopia de Orwell não se realizou
num Estado ditatorial, com partido único, sob a égide e mão de ferro de um
suposto Big Brother (que não é o da Rede Globo). Ocorre numa tal democracia
neoliberal, pluripartidária, com liberdades (de imprensa, de reunião, de
pensamento etc.). Claro, são todas liberdades formais, que não existem
concretamente para todos. Talvez esta seja a única diferença entre a sociedade
fantástica imaginada por Orwell e o absurdo da realidade em que vivemos.
E como o governo mente,
acreditando dizer a verdade? Como ele diz coisas opostas acreditando serem
ambas verdadeiras?
Uma amostra grátis
permite compreender o que estou dizendo. Bolsonaro e a equipe econômica do
governo afirmam que é preciso cuidar da questão (“cuestão”) do emprego e da
economia da mesma forma que da “cuestão” da saúde. No atual contexto (em que
não existe vacina nem tratamento), do modo como o governo entende o problema,
constitui de fato uma oposição, embora ele diga o contrário. Fazer como defende
o governo (isolamento vertical, ou seja, só grupos de risco) e relaxar as
restrições para os demais grupos é falso, pois a contaminação se estenderia aos
grupos de risco e como vem sendo
demonstrado, pessoas fora do grupo de risco também vem apresentando problemas
graves por causa da Covid-19. No final das contas, trata-se de uma imposição do
capital para a retomada da acumulação, e isto, no atual contexto, dar-se-á em
detrimento da saúde do trabalhador, que será exposto ao vírus para manter seu
emprego, ou seja, garantir a reprodução do capital. O governo dizer, portanto,
que vai cuidar da “cuestão” da saúde e da economia e emprego simultaneamente é
uma mentira, apesar de seu tom verdadeiro e grave. Talvez ele acredite nisto
realmente, ou seja, seu pensamento já emprega o duplipensar. Pode ser que seja
só um mentiroso mesmo, o que é mais provável.
Esta não é, contudo, uma
característica específica do governo Bolsonaro, pois o duplipensar, sob formas
discursivas diferentes, com vínculos partidários e interesses determinados,
sempre existiu no capitalismo e tem que existir enquanto forem as relações
capitalistas dominantes. Isto se deve ao fato de a verdade não poder ser dita
em sua totalidade, pois revelaria os interesses da classe capitalista, que não
são idênticos aos interesses das demais classes. Assim, necessariamente, este
duplo tem que aparecer. Ou seja, dizer-se uma parte da verdade, escondendo-se a
outra. Convencer a todos que esta parte da verdade é toda a verdade é o próprio
“duplipensar”. A arte de mentir acreditando dizer a verdade.
No que refere ao caso
brasileiro, o mais problemático é que parcelas significativas da população, algumas
devido suas condições materiais de existência (almoçar e jantar, pagar as
contas no final do mês etc.), outras devido posicionamento político acrítico
pró-Bolsonaro, e ainda outras por interesses econômicos mais ou menos
mesquinhos, realmente empregam o duplipensar, sem mesmo o saber. Aceitam as
duas proposições contraditórias e acham que ambas são verdadeiras.
Eis o drama de nossos
dias. Contudo, para as classes inferiores em geral, e para o proletariado em
particular, a lógica do duplipensar não interessa. Interessa-os outra lógica,
outro discurso, outra prática, outra vida, outra alternativa. Cuidar da saúde
ou morrer de fome? Cuidar do emprego ou morrer de Covid-19? Isto não é escolha,
é chantagem. São todas oposições que reproduzem a sociedade burguesa. Interessa
aos trabalhadores abolir estas oposições. Interessa-os, abolir a sociedade
existente. Interessa-os, portanto, a luta contra a ordem estabelecida e a
constituição de outras relações sociais, estas sim, humanizadas!!!