REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 03:
O QUE DO
CAPITALISMO PERMANECE NA SOCIEDADE AUTOGERIDA?
Carlos Henrique
Marques
Penso que uma das maiores dificuldades
para o movimento revolucionário (e movimento operário) é pensar a sociedade
pós-capitalista, pois os indivíduos nascem, vivem e só conhecem a nossa
sociedade e possuem dificuldade de imaginar o radicalmente novo. Esse é um dos
motivos pelos quais o pseudomarxismo não consegue ultrapassar as propostas de
capitalismo reformado, chamando-o de “socialismo”. A naturalização e
eternização das relações existentes no mundo atual é uma característica da
episteme burguesa e que é hegemônica na sociedade atual.
Digo isso para colocar que quando tratamos
de sociedade autogerida ou “comunismo”, estamos tratando do radicalmente novo e
daquilo que não podemos pensar com os conceitos usados para explicar a
sociedade capitalista, pois são outras relações sociais, outros conceitos.
Assim, o próprio termo “economia”, como
uma entidade separada, é um produto das sociedades divididas em classes sociais
e mais ainda do capitalismo. Embora haja uma divisão social do trabalho e
indivíduos voltados sob forma especializada para a produção e distribuição de
bens materiais, isso não cria “um mundo à parte” e sim relações sociais
específicas que não podem ser separadas da totalidade que é a sociedade.
Existem termos que facilitam o processo de fetichização das relações sociais,
incluindo daquelas envolvidas no processo de produção, o que se reforça com as
criações ideológicas das ciências particulares (fetichistas e especialistas). Por
isso, o conceito marxista que trata do processo de produção de bens materiais
não é economia e sim modo de produção.
O modo de produção autogerido, ou
comunista, abole a divisão social do trabalho e, por conseguinte, a necessidade
do dinheiro, capital, mercado. Isso é difícil de ser percebido por aqueles que
nasceram e viveram numa sociedade que vive em torno das relações sociais que
esses termos expressam e que são valorados socialmente. Aliás, o dinheiro e a
mercadoria surgiram antes do capitalismo, mas sob forma elementar, só no
capitalismo atingiram sua forma desenvolvida. O capital, no sentido mais
profundo do termo (sem confundi-lo com suas formas mais específicas e
derivadas, como “dinheiro”, “meios de produção”, etc.) surge com o capitalismo
e deixa de existir com a abolição deste.
O dinheiro tem como pressuposto a divisão
social do trabalho. Ele só ganha a primazia quando a unidade doméstica se torna
apenas unidade de consumo e não mais unidade de produção. Assim, a separação
entre lugar de produção e lugar de consumo faz com que as pessoas deixem de
produzir valores de uso e passem a produzir valores de troca. Esse processo se
desenvolve no capitalismo e gera a necessidade da aquisição de mercadorias,
possibilitando a exploração (extração de mais-valor) e o lucro. Numa sociedade
autogerida, essa separação entre unidade de produção dos bens materiais e
unidade de consumo é abolida. E o resto é coletivizado. No Manifesto Autogestionário, na última seção, isso é apontado[1].
O mercado é, no capitalismo, composto
pelas relações de distribuição capitalistas, que tem por base a produção
capitalista de mercadorias e sua generalização. Os pressupostos são os mesmos
do dinheiro, o meio de troca universal, a abolição de um significa a abolição
do outro. O capital, no sentido restrito do termo, ou seja, processo de
extração de mais-valor e acumulação, só tem sentido existindo os processos
anteriores (dinheiro e mercado), sem eles, ele não tem condições de existir. Em
síntese, os elementos característicos do capitalismo são abolidos e deles nada
permanece na sociedade autogerida. O que permanece é apenas o que é
necessário para a reprodução da humanidade e que não tem vínculo com relações de exploração
e dominação, ou seja, aquilo que atende às reais necessidades humanas e que é algo que existiu
em todas as sociedades (por exemplo, o trabalho, que deixa de ser alienado e
atributo de classe, tornando-se humanizado, práxis).
Na sociedade autogerida, o processo de
produção se torna, para a maioria dos bens de consumo, autoprodução, não
trazendo necessidade de dinheiro e mercado. A parte fora disso é organização
através da planificação coletiva da população. Os elementos mais gerais ligados
a esse processo, são organizados coletivamente através da planificação[2]. A autogestão social abole
o capitalismo em sua totalidade: estado, capital, dinheiro, mercado,
burocracia, etc. Isso explica, além de interesses, valores e outros processos
sociais e mentais, a incapacidade da maioria das pessoas imaginarem uma nova
sociedade, radicalmente diferente da atual. A maioria dos supostos
“reformadores do mundo” só conseguem imaginar um capitalismo reformado (mais
distribuição de renda, menos ou mais estado, mais ou menos liberdade
individual, etc.). Como já disse Pierre Leroy, “o limite de sua imaginação é o
limite de sua ação”[3].
Então é hora de desenvolver a imaginação revolucionária e imaginar o
radicalmente novo, a sociedade autogerida.
[1] Cf. VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de
Janeiro: Achiamé, 2008 (última seção, “A
Sociedade Autogerida”). Disponível em: http://2012.nildoviana.com/wp/wp-content/uploads/2012/09/Manifesto-Autogestionario-Nildo-Viana.pdf
[2]
Sobre a questão da planificação, veja: WILLIANS, Marc. Planificação e
Autogestão. Marxismo e Autogestão. Vol. 02, num. 04, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/8willians4/323
[3] LEROY, Pierre. O Vento ou a
Vida (O Modo Capitalista de Vida Como “Modo de Vida Fútil”). Marxismo e
Autogestão, vol. 01, num. 01, 2014. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/10leroy1/64