Num momento marcado pela irracionalidade, moralismos e quase total falta de disposição para leituras e reflexões, inicio este pequeno texto afirmando de antemão que existem distintas formas de voto nulo¹. Uma delas em especial aponta para a crítica total da sociedade capitalista e suas instituições: refiro-me à luta pelo voto nulo autogestionário. A luta pelo voto nulo autogestionário que o Movaut - Movimento Autogestionário defende coloca que este se trata de um momento (um meio) para um objetivo final (um fim último). Dessa forma, a crítica radical dos partidos e da democracia burguesa é um meio, uma expressão coerente da luta pela sociedade autogerida que é o objetivo final da luta pelo voto nulo autogestionário.
Logo, não se trata de uma questão conjuntural ou imediata: inclusive, a polarização burguesa atual (focada numa recusa acrítica à figura individual do presidente e seus aliados, o que aponta para o reforço da ilusão eleitoral) tem levado muitos indivíduos honestos a adotarem o voto no mais ou menos “ruim”, perpetuando e reforçando as ilusões de um “salvador” da política institucional no capitalismo. Obviamente que toda esta nuvem de fumaça é de interesse da burguesia e das suas classes auxiliares, incluindo aí os burocratas de partido que aspiram ou ascendem aos cargos no poder estatal, que é o poder político burguês. Isso oculta o fato de que todos os governos no capitalismo existem para manter intocáveis as relações de exploração e dominação de classe e demais relações sociais, que são relações entre classes, marcadas pela luta de classes.
Os governos do PT (que inclusive nos dois mandatos de Lula, foram apoiados pelo então deputado federal Bolsonaro e o partido que na época fazia parte, o PP) assim como os governos antes e pós-PT foram e serão os fieis serviçais da exploração e dominação capitalista. Não importa em qual das instâncias (municipal, estadual e federal), os governos e seus opositores de plantão continuarão criminalizando a luta das classes trabalhadoras – do proletariado em especial – e setores contestadores quando estas saírem de seu controle. Seja sabotando greves selvagens e lutas autônomas, seja minando as expressões políticas e organizações do proletariado revolucionário.
Todos os governos servem a este propósito: garantir as condições necessárias para a reprodução das relações sociais capitalistas. São os agentes reais do estado capitalista, a associação que faz valer os interesses comuns e os negócios das distintas frações da burguesia. Claro que há especificidades nacionais e regionais em cada governo e instância (municipal, estadual, federal) ao longo da história do capitalismo. Mas isso não invalida o fato de que a mutação formal e especificidade local carregam consigo a permanência do essencial: fazer valer os interesses e cumprir as tarefas políticas e econômicas da classe capitalista.
Se ficarmos nesses maniqueísmos, chavões e adjetivos (o que só evidencia a miséria intelectual, psíquica e cultural reinante na sociedade brasileira) do político, partido, governo X ou Y continuamos a perder de vista a totalidade e os interesses de classe do proletariado, a classe revolucionária da sociedade capitalista. Isso porque todos os partidos políticos (e dentro deles quem manda é a burocracia partidária) são organizações que reproduzem a divisão social do trabalho no seu interior e têm como objetivo conquistar o poder estatal.
E isso significa amortecer a luta de classes e a luta proletária em especial, impedindo ou então cooptando as formas organizacionais das classes inferiores, setores contestadores e, por conseguinte, do proletariado: isso porque quando esta classe se autonomiza e expressa seus interesses imediatos e históricos, avança da busca por melhores condições de vida nas relações de produção capitalistas para a luta pela abolição destas mesmas relações de produção e suas formas sociais correspondentes.
A história das lutas demonstra que toda vez que o proletariado e as classes inferiores conseguiram concessões da classe capitalista foi com base numa luta encarniçada, e inclusive contra os partidos: o caso recente no Brasil talvez possa não evidenciar este processo, mas as formas organizacionais criadas historicamente pela classe operária mundo afora foram aqui inspiração para a ação por setores contestadores², em especial no início deste século XXI.
Em síntese, a luta pelo voto nulo autogestionário (luta, pois se vincula ao objetivo final, que é a autogestão social, e não uma simples campanha) difere das demais formas de voto nulo, pois: a) não visa anular as eleições e sim criticar a democracia burguesa, o processo eleitoral e a sociedade capitalista como um todo; b) não se dirige como oposição aos candidatos e aos partidos do momento e sim faz a denúncia da burocracia partidária em geral, explicita seus vínculos com a reprodução do capitalismo e propõe a constituição de novas formas de organização, antagônicas aos partidos políticos; c) faz parte do processo mais amplo de luta pela superação do capitalismo, do qual a democracia burguesa, os partidos e o sistema eleitoral são partes integrantes. Dessa maneira, não se trata de uma atitude individual isolada, mas antes de um momento constitutivo do processo de luta mais amplo: a luta pelo voto nulo autogestionário faz parte da luta pela autogestão social, pois está articulada ao projeto revolucionário e à classe revolucionária de nossa época, o proletariado.
Assim, o voto nulo autogestionário é a ferramenta de luta contra a democracia burguesa e uma forma de demonstrar que somente através da autonomização do proletariado será possível combater radicalmente o conjunto das relações sociais capitalistas. Tal processo precisa se articular com as demais lutas nas demais esferas da vida social, generalizando novas relações sociais, superiores àquelas que os entusiastas da democracia e do voto se esforçam em legitimar visando seguir como classe auxiliar da burguesia. Votemos nulo: lutemos pela autogestão social!