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quinta-feira, 11 de junho de 2020

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 10: A QUEM SERVE O ANTIFASCISMO?



A QUEM SERVE O ANTIFASCISMO?
Jaciara Veiga
Mateus Alves


Eis que ressurge o monstro chamado fascismo e, consequentemente, seu produto, aquele que busca combatê-lo: o antifascismo.
Estamos sob ameaça de uma ditadura e não podemos subestimá-la, portanto, ser antifascista é urgente — clamam os defensores da democracia em “perigo”. O antifascismo volta à moda. Até mesmo aqueles que não sabem realmente do que se trata, se denominam antifascista. Muitas pessoas estão sendo rotuladas de fascistas: em especial, por aqueles que estão vendo fascismo em todo e qualquer fenômeno. O termo fascista foi despolitizado e tornou-se um chavão que frequentemente tem sido utilizado como arma na disputa política institucional, num jogo cujo objetivo nada mais é que impedir toda e qualquer forma de autonomização do proletariado, mantendo-o na dinâmica da reprodução ampliada do capital.
Nesse jogo, vale tudo. Utiliza-se da manipulação de sentimentos das classes inferiores, onde o medo, o ódio, a defesa da nação reforçam a adesão à ideia do monstro fascismo. Deste modo, somos encorajados a combater o inimigo fascista na defesa da nossa tão “igualitária” democracia. De fato, a ignorância e o medo podem nos levar à cegueira e, por conseguinte, à adesão daquilo que nem se quer sabemos definir.  Sendo assim, é até possível ignorar que o interesse da classe dominante é a manutenção de sua dominação sob qualquer forma, seja em um regime político democrático ou ditatorial, bem como o que determina se a burguesia optará por uma das duas formas é a dinâmica das lutas de classes e a perda de sua hegemonia no conjunto da sociedade. 
Para combater determinado fenômeno é necessário, antes de tudo, saber do que se trata o mesmo. Logo, a pergunta a ser feita é se sabemos o que estamos combatendo. Afinal de contas, o que é fascismo?
O fascismo [1] é um movimento político, ou seja, uma expressão política de classe (ou conjunto de classes, alianças de classes etc.); é caracterizado por ser um nacionalismo expansionista, integralista e totalitário; busca um estado forte, orgânico, sustentado por uma base policlassista. Ele não é um fenômeno universal, que emerge em qualquer contexto, sob qualquer forma; é uma forma histórica do capitalismo, não é um movimento destituído de historicidade e produzido arbitrariamente.
O fascismo é um produto do capitalismo. Ele surge em momentos de crise de um regime de acumulação [2], nos países imperialistas ou potencialmente imperialistas, num contexto de recuo e derrotas do movimento operário. O fascismo é, portanto, uma forma política específica e determinada utilizada pela classe dominante em alguns países de capitalismo imperialista. Seu caráter de classe é burguês, assentado numa burocracia forte (partidária, mas principalmente num estado forte, integral, totalitário), que satisfaça suas necessidades.
O fascismo (enquanto movimento político e forma estatal) desapareceu. Contudo, o uso banalizado do termo no capitalismo contemporâneo é marcado pela suposta reemergência deste fenômeno. Com certeza, tal utilização não tem relação alguma com o que se passou no contexto da luta de classes na Itália durante as décadas de 1920 e 1930. Para ser fascismo necessitaria possuir seus elementos essenciais supracitados. Sendo assim, podemos dizer que o atual governo brasileiro é fascista?
De acordo com determinadas representações cotidianas [3] e algumas representações ilusórias [4] acerca do governo Bolsonaro — que se baseiam no comportamento de um indivíduo, no caso, o próprio Bolsonaro — estamos sim sob um governo fascista. Esse discurso tem sua origem nas eleições de 2018 onde, para surpresa e descontentamento de muitos, se deu sua vitória. Todavia, esse discurso não foi totalmente superado e voltou à tona. Apesar de o Brasil ser um país de capitalismo subordinado, sem nenhuma base imperialista, o presidente é considerado fascista, e logo, o seu governo também.
Dizer que o atual governo é fascista demonstra, de um lado, a ausência de criticidade por parte de indivíduos que desconhecem esse fenômeno e apenas reproduzem tal discurso e, por outro, o oportunismo daqueles que buscam reproduzir essa sociedade, seja lá qual for a forma, se pela via democrática ou pela via ditatorial. O governo Bolsonaro [5] é um governo neoliberal, subordinado aos países imperialistas. Por mais que o presidente, alguns setores do seu governo e parcelas da sociedade demonstrem desejar romper com o “estado democrático”, isso não é suficiente para afirmar que o mesmo seja fascista, faltam diversos elementos para que se configure um governo realmente fascista. Logo, um movimento que se denomina antifascista combate, na verdade, uma caricatura mal feita do fascismo.
O antifascismo não está livre da determinação dos interesses de classe, pois, nas sociedades classistas, os interesses e a consciência dos seres humanos são determinados pela sua posição (e em como enxergam sua posição) na divisão social do trabalho. Na sociedade contemporânea existem diversas classes sociais que apresentam interesses fundamentais distintos e até antagônicos que se manifestam por meio da luta de classes. Então, torna-se essencial refletir quais interesses são expressos pelo antifascismo e como a luta de classes se manifesta concretamente em seu ressurgimento no atual cenário político brasileiro.
Como já mencionado anteriormente, o governo Bolsonaro não é fascista, mas apesar disso, os antifascistas combatem o atual governo qualificando-o como tal. Esta caracterização ofusca a consciência dos indivíduos acerca da realidade, pois apresenta a mera mudança de governo como solução para a insatisfação de parte das classes inferiores em relação às políticas estatais. E, além disso, esconde os interesses do estado pela reprodução do capitalismo. As ações do governo Bolsonaro são determinadas, em última instância, pelos interesses da burguesia em manter o próprio capitalismo. Qualquer outro governo, da mesma forma que o atual, deve efetivar políticas estatais que correspondam às necessidades da acumulação de capital. Portanto, o limite intransponível do antifascismo é a mera mudança de um governo conservantista para um governo progressista, isto é, um governo que atende algumas exigências mínimas das classes inferiores com o único objetivo de estabilizar a acumulação de capital.
Não é surpresa que parte do bloco progressista (partidos social-democratas, partidos leninistas, alguns intelectuais, etc.) [6] se contorça de prazer quando conseguem apoio de parte da sociedade em torno do antifascismo, uma vez que ganham mais força política para conseguir concretizar seu principal interesse: ascender ao poder estatal. Também não é surpresa que as manifestações, textos, manifestos antifascistas sejam defendidos por alguns partidos, alguns intelectuais, e algumas organizações mobilizadoras dos movimentos sociais de tendência progressista.
No entanto, o bloco progressista necessita, em decorrência da própria fragilidade, do apoio de outros setores da sociedade para conseguir satisfazer seu próprio interesse e, ao mesmo tempo, não pode revelar toda a verdade para as classes inferiores, correndo o risco delas se rebelarem. Assim, nada mais oportuno que, em um momento de fragilidade do governo Bolsonaro, ressurja o antifascismo que consegue enfraquecer o atual governo, e simultaneamente legitimar e reforçar o bloco progressista e suas principais ideologias como o reformismo, para enfim, ter apoio e condições de conquistar o poder estatal.
Então, se o antifascismo não é capaz de expressar os interesses fundamentais do proletariado revolucionário e, na verdade, ressurge como expressão do oportunismo do bloco progressista, diante da conjuntura atual, para enfraquecer tão somente o governo Bolsonaro com o objetivo de trocá-lo por outro, resta-nos saber a posição dos revolucionários sobre esta questão.
Os revolucionários não se interessam pela conquista do poder estatal ou mesmo em quem o assumiu ou assumirá. Não nos interessa também quais são as políticas estatais que se efetivarão para atender as necessidades da acumulação de capital, mantendo os trabalhadores ainda sob o julgo da exploração e dominação. O que nos interessa é a abolição total do estado simultaneamente com a abolição do modo de produção capitalista e de todas as outras formas sociais determinadas por ele, isto é, queremos a abolição total das relações sociais capitalistas em prol de uma sociedade onde as relações sociais atendam às necessidades humanas, bem como estimulem as suas potencialidades. Em outras palavras, este é o projeto autogestionário que visa uma sociedade autogerida.
A adesão ao antifascismo significaria trilhar um caminho que nos levaria em direções contrárias ao nosso destino. Significaria realizar uma série de concessões contrarrevolucionárias, que não representam um passo rumo à abolição do capitalismo e da concretização do projeto autogestionário, mas sim o oposto, significaria reforçar e legitimar ideologias como o reformismo, progressismo, estatismo etc.
Para concretizar o projeto autogestionário são necessários meios adequados, isto é, deve existir uma unidade entre meios e fins. Então, para isso, insistimos que o fundamental é ainda a velha máxima do Manifesto Comunista: a associação dos trabalhadores visando sua autoemancipação. Dessa maneira, é necessário criticar todas as ideologias, concepções etc. que ofuscam a realidade e impedem uma consciência revolucionária. A adesão ao antifascismo é um obstáculo que impede o proletariado revolucionário de trilhar seu caminho rumo a uma sociedade autogerida.

Notas:
[2] O regime de acumulação é a forma que o capitalismo assume durante o seu desenvolvimento, mantendo sua essência. É marcado por determinada forma de organização do trabalho, determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional, manifestando, portanto, um determinado estágio da luta de classes. Sobre regimes de acumulação: O capitalismo na era da acumulação integral, Nildo Viana; O regime de acumulação integral: retratos do capitalismo contemporâneo, Felipe Mateus (org.).
[3] As representações cotidianas são formas de representar o mundo em nossa cotidianidade, reproduzindo suas características (simplicidade, regularidade e naturalidade). Estas representações podem ser ilusórias, mas também verdadeiras.  Sobre representações cotidianas, ver: Senso comum, representações sociais e representações cotidianas, de Nildo Viana.
[4] A titulo de exemplo, temos o discurso de alguns representantes do bloco progressista como Fernando Haddad: “Quando superarmos a ameaça fascista e garantirmos a preservação do Estado de Direito, se dará a verdadeira disputa democrática, entre diferentes times e sonhos. Espero que sem trapaça desta vez" (https://www.brasil247.com/poder/haddad-defende-manifestos-e-frentes-popular-e-antifascista). E também de Boulos: “Não basta assinarmos manifestos unitários, que julgo importantes, aliás, subscrevi todos. Mas a hegemonia fascista, mesmo minoritária, se afirma nas ruas. Foi assim com os Camisas Negras de Mussolini e com as milícias hitleristas. Poderia ter sido assim com os integralistas de Plinio Salgado no Brasil se os comunistas não os tivessem enxotado das ruas. Se normalizamos gente defendendo AI-5 e agredindo opositores, jornalistas e enfermeiras em praça pública, daqui a pouco não teremos condições de dar as caras” (https://www.brasil247.com/brasil/boulos-mtst-e-povo-sem-medo-estarao-nas-ruas-no-domingo). Pode-se observar tanto a manipulação de sentimentos por meio da “ameaça fascista” quanto a tentativa de canalizar as lutas do proletariado para as disputas da política institucional (“disputa democrática”).


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