segunda-feira, 25 de maio de 2020

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 08: O GOVERNO BOLSONARO, A PANDEMIA E O DUPLIPENSAR




O GOVERNO BOLSONARO, A PANDEMIA E O DUPLIPENSAR

Lucas Maia

O clássico 1984 de George Orwell publicado em 1949 apresenta um futuro atordoante. Uma sociedade autoritária, burocrática, na qual nenhum tipo de liberdade é possível, principalmente a de pensamento. Pensar além do que é permitido pelo poder instituído é o maior dos crimes, a “Crimideia”. Esta sociedade autoritária, cujo poder aparentemente eterno e imbatível do Partido único e seu Grande Irmão é possível devido a três elementos: “novilíngua”, “controle do passado” e “duplipensar”.

Vou me ater somente ao último estratagema do poder para refletir sobre a postura do governo Bolsonaro diante do problema da pandemia relacionada ao coronavírus. Antes de continuar, há que se entender o que é o duplipensar. Orwell assim o define:

Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade (...). Até para compreender a palavra duplipensar era necessário usar o duplipensar (ORWELL, George. 1984).

É possível uma tal forma de pensar? Este raciocínio de Orwell só é possível na sociedade por ele imaginada, com aquele futuro sombrio e autoritário? Ou será que o duplipensar está tão entranhado em nosso cotidiano, que nós o usamos ou o vemos sendo usado a todo momento e nem o percebemos?

Já estamos em 2020, 36 anos depois de 1984. Talvez a distopia já se tenha concretizado e estamos tão enterrados nela que nem ao menos conseguimos perceber que a novilíngua é reinventada a todo o momento. Veja o que fez o capitalismo contemporâneo, com seu arsenal de novas palavras: “empreendedorismo”, “gestão de carreira”, “inteligência emocional”... E o controle do passado? Já acontece? Os revisionismos históricos estão aí para provar: holocausto não existiu, nazismo era de esquerda, ditadura militar no Brasil não existiu ou não foi assim tão violenta etc.

E o duplipensar? É real? É possível afirmar coisas contraditórias, uma negando a outra e mesmo assim acreditar que ambas são verdadeiras? É possível mentir, acreditando realmente dizer a verdade? É possível ser ilógico usando a lógica? Imoral defendendo a moralidade?

Parece-me que a atitude do governo federal, em sua disputa política com os governos estaduais, setores do capital comunicacional (Rede Globo, Jornal Folha de São Paulo etc.), o bloco progressista em peso (partidos de esquerda, sindicatos, alguns setores da intelectualidade etc.) utiliza exatamente o duplipensar. A distopia de Orwell não se realizou num Estado ditatorial, com partido único, sob a égide e mão de ferro de um suposto Big Brother (que não é o da Rede Globo). Ocorre numa tal democracia neoliberal, pluripartidária, com liberdades (de imprensa, de reunião, de pensamento etc.). Claro, são todas liberdades formais, que não existem concretamente para todos. Talvez esta seja a única diferença entre a sociedade fantástica imaginada por Orwell e o absurdo da realidade em que vivemos.

E como o governo mente, acreditando dizer a verdade? Como ele diz coisas opostas acreditando serem ambas verdadeiras?

Uma amostra grátis permite compreender o que estou dizendo. Bolsonaro e a equipe econômica do governo afirmam que é preciso cuidar da questão (“cuestão”) do emprego e da economia da mesma forma que da “cuestão” da saúde. No atual contexto (em que não existe vacina nem tratamento), do modo como o governo entende o problema, constitui de fato uma oposição, embora ele diga o contrário. Fazer como defende o governo (isolamento vertical, ou seja, só grupos de risco) e relaxar as restrições para os demais grupos é falso, pois a contaminação se estenderia aos grupos de risco e  como vem sendo demonstrado, pessoas fora do grupo de risco também vem apresentando problemas graves por causa da Covid-19. No final das contas, trata-se de uma imposição do capital para a retomada da acumulação, e isto, no atual contexto, dar-se-á em detrimento da saúde do trabalhador, que será exposto ao vírus para manter seu emprego, ou seja, garantir a reprodução do capital. O governo dizer, portanto, que vai cuidar da “cuestão” da saúde e da economia e emprego simultaneamente é uma mentira, apesar de seu tom verdadeiro e grave. Talvez ele acredite nisto realmente, ou seja, seu pensamento já emprega o duplipensar. Pode ser que seja só um mentiroso mesmo, o que é mais provável.

Esta não é, contudo, uma característica específica do governo Bolsonaro, pois o duplipensar, sob formas discursivas diferentes, com vínculos partidários e interesses determinados, sempre existiu no capitalismo e tem que existir enquanto forem as relações capitalistas dominantes. Isto se deve ao fato de a verdade não poder ser dita em sua totalidade, pois revelaria os interesses da classe capitalista, que não são idênticos aos interesses das demais classes. Assim, necessariamente, este duplo tem que aparecer. Ou seja, dizer-se uma parte da verdade, escondendo-se a outra. Convencer a todos que esta parte da verdade é toda a verdade é o próprio “duplipensar”. A arte de mentir acreditando dizer a verdade.

No que refere ao caso brasileiro, o mais problemático é que parcelas significativas da população, algumas devido suas condições materiais de existência (almoçar e jantar, pagar as contas no final do mês etc.), outras devido posicionamento político acrítico pró-Bolsonaro, e ainda outras por interesses econômicos mais ou menos mesquinhos, realmente empregam o duplipensar, sem mesmo o saber. Aceitam as duas proposições contraditórias e acham que ambas são verdadeiras.

Eis o drama de nossos dias. Contudo, para as classes inferiores em geral, e para o proletariado em particular, a lógica do duplipensar não interessa. Interessa-os outra lógica, outro discurso, outra prática, outra vida, outra alternativa. Cuidar da saúde ou morrer de fome? Cuidar do emprego ou morrer de Covid-19? Isto não é escolha, é chantagem. São todas oposições que reproduzem a sociedade burguesa. Interessa aos trabalhadores abolir estas oposições. Interessa-os, abolir a sociedade existente. Interessa-os, portanto, a luta contra a ordem estabelecida e a constituição de outras relações sociais, estas sim, humanizadas!!!

Um comentário:

  1. Estou perplexa com a clarividência desse texto. Grata pela divulgação de uma reflexão centrada, digna de quem tem cérebro e o utiliza com a criticidade necessária para avaliar o que se passa.

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