quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Saúde e morte: o pseudodilema da vacina


 

Saúde e morte: o pseudodilema da vacina

 Leonardo Venicius Parreira Proto1

 

Nestes últimos meses de pandemia temos visto um intenso debate sobre a necessidade e o direito à vacinação para imunização da covid-19. Esta intensidade da discussão, para surpresa de muitos adentrou a arena da cena pública e tem sido pauta permanente dos noticiários televisivos, nos meios impressos e, não poderia faltar em nosso contexto, nas redes sociais. A ênfase na surpresa se deve ao caráter da ingenuidade de vários indivíduos ou mesmo dos que estão “calejados” com a discussão pública, seja esta em que níveis forem, dos debates simples aos mais complexos. Não é novidade que em debates públicos haja polêmicas e embates de aspectos da vida social e a separação entre o que pensamos e o que pode ser dito está intensificado no “cenário” das redes sociais. Isto talvez apresente a nós um sintoma2 do atual estado de coisas, visto a “olho nu” no emaranhado das relações sociais. A estes ingênuos da questão política cabe lembrar o célebre poema de Brecht:

 

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo3.

               

     Muitos que criticam o denominado negacionismo, também incorrem em negação ao se espantarem com um governo que “faz pouco ou nenhum caso” da política sanitarista implementada nos últimos meses. A negação se dá pelo fato de expressarem que em outro tipo de gestão governamental, de governos petistas, supostamente progressista, seria possível a legitimação do discurso de que um outro “governo é possível”, com agendas e pautas defendidas pelo progressismo.

     O que se nega e não se vê, é que em quaisquer situações e acontecimentos sociais - e agora do contágio e possibilidade de imunização com a aprovação de vacinas, seja para defender, acusar ou mesmo negar, sob bases discursivas científicas ou anticientíficas, tal como neste cenário, expressa uma falsa politização do debate, seja por aspectos como as discussões relacionadas ao que seja direita e esquerda, seja pela defesa do identitarismo, entre outros aspectos das relações sociais contemporâneas. Esta pseudopolitização das questões sociais poderá ser vista na próxima gestão do governo norte-americano, eleito entre outros motivos pelo caráter negacionista de Trump. Portanto, a pseudopolitização do debate nada mais significa que a tentativa de ocultar a dinâmica da luta de classes no interior desta sociedade, suas contradições e potencialidades para o combate ao capitalismo.

     O uso atual do termo “negacionismo” pode ser compreendido a partir da análise das ilusões ou o que ficou conhecido como “falsa consciência”, possuindo um elemento comum ao discurso ideológico, a naturalização. Algumas ideologias burguesas, ao naturalizarem a miséria social, negam a sua essência, a sua determinação fundamental, que são as relações de exploração e dominação de classe geradoras do processo de capital. Ao negar esta origem social da miséria, e com ela as consequências do adoecimento dos indivíduos em escala planetária, as perspectivas reformistas4 “aparecem”, tanto no espectro do bloco dominante como no bloco progressista5 para ocultarem a dinâmica de exploração.

Basta vermos as reformas empreendidas na política institucional desde o início do século XXI, seja para maior ou menor dano. O que se propõe hoje são mudanças de governo e supostamente de “políticas governamentais”, mas que não saem do âmbito do neoliberalismo, aliado com o microrreformismo. Isto aparece como saída para atenuar os tensionamentos entre as classes, sobretudo, com as classes inferiores, que de fato podem potencializar processos revolucionários no caminho das lutas em prol da emancipação humana.

No caso brasileiro, isto pode ser ilustrado historicamente desde a revolta da vacina em 1904 e a tentativa da política sanitarista do governo do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), conduzida pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) à época, de impor uma reforma sanitária na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. E com esta medida houve uma resistência de setores das classes inferiores quanto à imposição de tal política e seu ideário de “modernização” da sociedade brasileira (SEVCENKO, 2018).

     Disputas políticas nunca se ausentaram do debate, como vimos acima com a revolta da vacina, mas agora há uma negação da imunização da doença, decorrente da leniência estatal em dispor da vacina para uma campanha nacional. Porém, o embate político para negar ou não a necessidade da vacina para a saúde dos indivíduos, dissimula o que está por trás da produção da própria vacina, ou seja, o fortalecimento do capital farmacêutico6.

     A distribuição da vacina por parte do Estado, continua a ocultar os conflitos inerentes a sociedade de classes, pois a necessidade de produção mundial de vacinas tem como objetivo salvaguardar os interesses de acumulação do capital farmacêutico. Afinal, em termos científicos, a produção de imunizantes não se faz do “dia para a noite”. E como estamos acompanhando, os países capitalistas avançados como Inglaterra e E.U.A, apoiados pelo capital farmacêutico não perderam tempo e já iniciaram o procedimento de vacinação de sua população.

 Assim, o capitalismo é um produtor de pandemias, embora isso não apareça imediatamente na consciência das pessoas, pois o imediato é mais visível, enquanto que as mediações/determinações são menos perceptíveis. Um acontecimento é rapidamente perceptível em si, mas o seu processo de constituição, suas determinações, já não são acessadas pela consciência imediatamente, com raras exceções. Um vírus que surge na cidade X remete para a responsabilização desse local e não das condições sociais, ambientais e outras, que permitem sua emergência, bem como transmissão e disseminação (VIANA, 2020, s/p.).

 

As doenças e contágios nesta sociedade não são casuais, são desenvolvidas pelas formas de produção e reprodução do capitalismo. Os efeitos danosos à saúde são ocasionados pelas relações de exploração de classes, que ao explorar os indivíduos das classes trabalhadoras, impõe a mesma lógica sobre a natureza e o conjunto do planeta. A produção de doenças e suas patologias são intensificadas no regime de acumulação integral7 e a possibilidade de disseminação mais rápida acompanha o desenvolvimento tecnológico e do capital recreativo,8 etc. E cabe ao capital farmacêutico incrementar com pesquisas e novos medicamentos a partir da demanda criada. Demanda esta que será incentivada tendo em vista os discursos produzidos pela intelectualidade e pelo capital comunicacional9, favoráveis à medicalização dos indivíduos. Isto não seria diferente em um contexto de pandemia.

     A crítica de Viana (2020) esboçada acima reforça nosso posicionamento de que saúde e morte na sociedade capitalista são apropriadas a partir dos interesses da classe dominante e de sua lógica de reprodução. A negação como um aspecto do dilema da vacina é melhor compreendido se olharmos para além das questões imediatas da doença e seus efeitos, que não são somente biológicos, clínicos, orgânicos, mas também políticos. Desafia-nos a pensar a superação desta realidade imediata e propormos uma ação política que enfrente a dinâmica do capital, a existência do Estado (e a necessidade de sua abolição), os mecanismos restritos de participação da representação política e as formas de burocratização da vida social.

     Em síntese, é preciso desenvolver formas de auto-organização e autoformação, o que pressupõe a existência de um projeto revolucionário, no qual o desenvolvimento da consciência revolucionária se tornará hegemônica, e por isto, o movimento operário e os movimentos sociais revolucionários constituirão os meios necessários para lutarmos pela superação do capitalismo.

     Dessa feita, urge para os indivíduos se engajarem nas lutas sociais em prol da nossa realização humana plena, o que pressupõe lutar para dissolver os meios políticos instrumentalizados pela burocratização das relações sociais. O desenvolvimento da consciência e da auto-organização são fundamentais para a luta pela transformação social radical e total e por isso torna-se necessário a formação de coletivos que contribuam com a ampliação dessa luta. Essa é a forma de luta que precisamos incentivar e que nos ajudam a posicionar diante dos diversos dilemas sociais, tais como o da vacina e pandemia.

 

Referências

SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018.

BRAGA, Lisandro. Capital comunicacional e discurso do poder. Revista Enfrentamento, ano 10, n. 17, jan/jun, 2015.

FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. Obras completas, ESB, v. XX (1925-1926). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

ORIO, Mateus. Capital Recreativo: a apropriação capitalista do lazer. Curitiba: CRV, 2019.

TELES, Gabriel e ORIO, Mateus. Capital Recreativo. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/capital-recreativo/>. Acesso em: 29 de dez. de 2020.

VIANA, Nildo. Para além da crítica dos meios de comunicação. In: MARQUE, Edmilson et al (Orgs.). Indústria cultura e cultura mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007.

VIANA, Nildo. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida: Idéias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. Capital Farmacêutico, Medicalização e Invenção de Doenças. Revista Espaço Livre, v. 07, p. 37-41, 2012.

VIANA, Nildo. Blocos Sociais e Luta de Classes. Revista Enfrentamento, ano 10, n. 17, jan/jun, 2015.

VIANA, Nildo. Sobre a relação capitalismo-pandemia. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/sobre-a-relacao-capitalismo-pandemia/>. Acesso em: 13 de dez. de 2020.

 

 


1  Militante autogestionário.

2  A palavra tem significado ligado ao conhecimento da medicina, referente às causas de nossos estados físicos e orgânicos no processo de adoecimento; como também tem um significado específico para o saber psicanalítico, como um aspecto que “anuncia” a chegada da patologia. Em termos psicanalíticos, sintoma expressa a formação de compromisso, pois “serve a dois senhores” na tentativa de agradar o id e o superego (FREUD, 1996).

3  BRECHT, Bertold. O Analfabeto Político. In: Poemas. 1913-1936. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1987.

4  No capitalismo contemporâneo, em seu atual regime de acumulação integral, “aparecem” políticas estatais específicas, que são na realidade microrreformistas, cujo objetivo é desenvolver políticas segmentares, cujo interesse das classes dominantes é a cooptação de certos setores sociais, como se pode ver como exemplo, a política de cotas para ingresso em instituições federais de ensino superior e técnico no Brasil, implementadas no governo petista de Dilma Rousseff em 2012 (Lei 12.711).

5  Para Viana (2015), os blocos sociais são as forças organizadas e conscientes que manifestam os interesses de determinadas classes e frações de classes. No capitalismo, as duas classes sociais fundamentais geram dois blocos sociais, que aglutinam outras classes no seu interior. Trata-se do proletariado, classe produtora de mais-valor, e da burguesia, classe apropriadora de mais-valor. Estas duas classes geram dois blocos sociais: o dominante e o revolucionário (esse mais frágil devido suas bases sociais: proletariado e demais classes inferiores). Porém, existem outras classes que buscam se autonomizar e defender interesses próprios, gerando um terceiro bloco social, que fica entre os dois anteriores e é o bloco progressista. O bloco dominante reúne as organizações da burguesia, como o aparato estatal, e diversas instituições (fundações, institutos, partidos políticos, etc.) e diversas ideologias e concepções (liberais, republicanas, fascistas, nazistas, etc.), e o bloco revolucionário reúne os representantes intelectuais do proletariado (marxistas autogestionários, anarquistas, autonomistas) e algumas organizações (de revolucionários e de operários, entre outras), enquanto que o bloco progressista também gera suas organizações (partidos progressistas em geral, como social-democratas, trabalhistas, bolchevistas, entre outras formas organizativas) e ideologias (leninismo, social-democracia, sindicalismo, etc.).

6  Capital farmacêutico é um termo em que se expressa uma divisão do capital responsável pela exploração e produção de mercadorias para este setor do capital. Ele é fortalecido nas formas do atual regime de acumulação integral (neoliberalismo), para que ocorra a reprodução ampliada do capital e ampliação do mercado consumidor, daí a necessidade da medicalização e da “invenção de doenças”, que no processo de tratamento desenvolve doenças reais (VIANA, 2009; 2012).

7  Essa forma social é desenvolvida como tese em Viana (2009) busca compreender o processo histórico de desenvolvimento do capitalismo e suas formas de acumulação, desde o surgimento do capitalismo na sociedade moderna. A teoria do regime de acumulação integral é a forma atual de acumulação capitalista, portanto, uma acumulação que ao mesmo tempo é intensiva e extensiva, derivado da intensificação da exploração da força de trabalho por meio do aumento da extração de mais-valor relativo e absoluto. Esta forma atual de intensificação da exploração se torna o regime de acumulação dominante a partir de 1980. Esse regime de acumulação produz mudanças no âmbito da esfera da produção e sua distribuição, o que implica também transformações culturais, como se pode ver naquilo que é considerado como ideologia da globalização. “O que se chama “globalização” é, na verdade, uma nova fase da constante reconversão capitalista, em que, como sempre, os países subordinados se inserem de forma desvantajosa e contraditória no novo contexto do capitalismo mundial, marcado pela instauração do regime de acumulação integral” (p. 139).

8  O setor do capital responsável pela exploração capitalista do lazer é o capital recreativo. As relações sociais no modo de produção capitalista são mercantilizadas e o lazer está inserido nesta lógica de reprodução, tanto da produção de mercadorias como para o consumo das mesmas (ÓRIO, 2019). Portanto, há um conjunto de atividades recreativas, de filmes a jogos eletrônicos, que reproduzem a sociedade capitalista e são mercantilizadas e tornam-se mercancias, o que significa reproduzir o capital em seu regime de acumulação atual (TELES e ORIO, 2020).

9  Assim como capital farmacêutico e recreativo, outra forma de capital que pode ser analisada a partir do regime de acumulação integral, é o comunicacional. Não que este não existisse no regime de acumulação anterior, mas que se potencializa no atual regime e expressa “relações sociais de exploração e acumulação, em contraposição a um mero processo de produção não definido linguisticamente, tal como indústria ou empresa (VIANA, 2007, p. 14). Isto significa que as formas de comunicação na atualidade são dominadas pelos oligopólios de comunicação e seus meios tecnológicos, de maneira expansiva em todo o mundo (BRAGA, 2015).