domingo, 25 de março de 2018

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 03: O QUE DO CAPITALISMO PERMANECE NA SOCIEDADE AUTOGERIDA?

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 03: 


O QUE DO CAPITALISMO PERMANECE NA SOCIEDADE AUTOGERIDA?

Carlos Henrique Marques

Penso que uma das maiores dificuldades para o movimento revolucionário (e movimento operário) é pensar a sociedade pós-capitalista, pois os indivíduos nascem, vivem e só conhecem a nossa sociedade e possuem dificuldade de imaginar o radicalmente novo. Esse é um dos motivos pelos quais o pseudomarxismo não consegue ultrapassar as propostas de capitalismo reformado, chamando-o de “socialismo”. A naturalização e eternização das relações existentes no mundo atual é uma característica da episteme burguesa e que é hegemônica na sociedade atual.
Digo isso para colocar que quando tratamos de sociedade autogerida ou “comunismo”, estamos tratando do radicalmente novo e daquilo que não podemos pensar com os conceitos usados para explicar a sociedade capitalista, pois são outras relações sociais, outros conceitos.
Assim, o próprio termo “economia”, como uma entidade separada, é um produto das sociedades divididas em classes sociais e mais ainda do capitalismo. Embora haja uma divisão social do trabalho e indivíduos voltados sob forma especializada para a produção e distribuição de bens materiais, isso não cria “um mundo à parte” e sim relações sociais específicas que não podem ser separadas da totalidade que é a sociedade. Existem termos que facilitam o processo de fetichização das relações sociais, incluindo daquelas envolvidas no processo de produção, o que se reforça com as criações ideológicas das ciências particulares (fetichistas e especialistas). Por isso, o conceito marxista que trata do processo de produção de bens materiais não é economia e sim modo de produção.
O modo de produção autogerido, ou comunista, abole a divisão social do trabalho e, por conseguinte, a necessidade do dinheiro, capital, mercado. Isso é difícil de ser percebido por aqueles que nasceram e viveram numa sociedade que vive em torno das relações sociais que esses termos expressam e que são valorados socialmente. Aliás, o dinheiro e a mercadoria surgiram antes do capitalismo, mas sob forma elementar, só no capitalismo atingiram sua forma desenvolvida. O capital, no sentido mais profundo do termo (sem confundi-lo com suas formas mais específicas e derivadas, como “dinheiro”, “meios de produção”, etc.) surge com o capitalismo e deixa de existir com a abolição deste.
O dinheiro tem como pressuposto a divisão social do trabalho. Ele só ganha a primazia quando a unidade doméstica se torna apenas unidade de consumo e não mais unidade de produção. Assim, a separação entre lugar de produção e lugar de consumo faz com que as pessoas deixem de produzir valores de uso e passem a produzir valores de troca. Esse processo se desenvolve no capitalismo e gera a necessidade da aquisição de mercadorias, possibilitando a exploração (extração de mais-valor) e o lucro. Numa sociedade autogerida, essa separação entre unidade de produção dos bens materiais e unidade de consumo é abolida. E o resto é coletivizado. No Manifesto Autogestionário, na última seção, isso é apontado[1].
O mercado é, no capitalismo, composto pelas relações de distribuição capitalistas, que tem por base a produção capitalista de mercadorias e sua generalização. Os pressupostos são os mesmos do dinheiro, o meio de troca universal, a abolição de um significa a abolição do outro. O capital, no sentido restrito do termo, ou seja, processo de extração de mais-valor e acumulação, só tem sentido existindo os processos anteriores (dinheiro e mercado), sem eles, ele não tem condições de existir. Em síntese, os elementos característicos do capitalismo são abolidos e deles nada permanece na sociedade autogerida. O que permanece é apenas o que é necessário para a reprodução da humanidade e que não tem vínculo com relações de exploração e dominação, ou seja, aquilo que atende às reais necessidades humanas e que é algo que existiu em todas as sociedades (por exemplo, o trabalho, que deixa de ser alienado e atributo de classe, tornando-se humanizado, práxis).
Na sociedade autogerida, o processo de produção se torna, para a maioria dos bens de consumo, autoprodução, não trazendo necessidade de dinheiro e mercado. A parte fora disso é organização através da planificação coletiva da população. Os elementos mais gerais ligados a esse processo, são organizados coletivamente através da planificação[2]. A autogestão social abole o capitalismo em sua totalidade: estado, capital, dinheiro, mercado, burocracia, etc. Isso explica, além de interesses, valores e outros processos sociais e mentais, a incapacidade da maioria das pessoas imaginarem uma nova sociedade, radicalmente diferente da atual. A maioria dos supostos “reformadores do mundo” só conseguem imaginar um capitalismo reformado (mais distribuição de renda, menos ou mais estado, mais ou menos liberdade individual, etc.). Como já disse Pierre Leroy, “o limite de sua imaginação é o limite de sua ação”[3]. Então é hora de desenvolver a imaginação revolucionária e imaginar o radicalmente novo, a sociedade autogerida.



[1] Cf. VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008 (última seção, “A Sociedade Autogerida”). Disponível em: http://2012.nildoviana.com/wp/wp-content/uploads/2012/09/Manifesto-Autogestionario-Nildo-Viana.pdf
[2] Sobre a questão da planificação, veja: WILLIANS, Marc. Planificação e Autogestão. Marxismo e Autogestão. Vol. 02, num. 04, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/8willians4/323
[3] LEROY, Pierre. O Vento ou a Vida (O Modo Capitalista de Vida Como “Modo de Vida Fútil”). Marxismo e Autogestão, vol. 01, num. 01, 2014. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/10leroy1/64

sexta-feira, 16 de março de 2018

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 02: AUTOGESTÃO SOCIAL E EDUCAÇÃO. CRÍTICA À ESCOLA DO TRABALHO BOLCHEVIQUE. OS LIMITES DE MOISEY PISTRAK


Ricardo Golovaty

Moisey Pistrak[1] elaborou sua concepção de escola politécnica baseando-se na ideologia (falsa consciência sistematizada) do “período de transição” de Lenin. Fato deveras problemático, seja pelo debate sobre educação e revolução, seja pela atualidade conferida ao autor no Brasil.[2]

Qual é, portanto, a herança de Pistrak à questão da educação, escolarização e revolução?

Pistrak desenvolveu suas posições em meio às disputas dos intelectuais e burocratas bolcheviques sobre os rumos da Rússia pós-revolucionária (e contrarrevolucionária). As suas noções de instrução politécnica ou politecnia e auto-organização escolar forneciam a base de uma educação voltada para a formação ampla, do desenvolvimento técnico, científico e político.

Pistrak limitou-se a encontrar nos grupos de pioneiros e na juventude comunista, ligados aos bolcheviques, as bases de tal democratização da burocracia escolar.

Pistrak aceitou construir sua proposta politécnica nas necessidades imediatas da acumulação de capital e desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da formação, em curto período de tempo, de técnicos e de operários. Daí sua relação contraditória com o taylorismo, do qual acreditava, ingenuamente, poder depurar os elementos da dominação da gestão capitalista do trabalho, concentrando-se apenas nos elementos da racionalização. Uma ideologia, portanto.

Quanto ao nosso momento, ele não se dá num processo de contrarrevolução burocrática, contudo, a burocracia é a alma da escola burguesa. Seja nas chamadas escolas públicas (na verdade, estatais), seja nas escolas privadas, técnicas ou propedêuticas, a escola é o “paraíso da burocracia”, como afirmava Maurício Tragtenberg. As relações de poder são permeadas pela desigualdade. Há separação nítida entre planejamento e execução. Mesmo o corpo docente, que possui, dependendo do local de trabalho, maior ou menor possibilidade de autonomia no arranjo de seu trabalho, está constantemente amarrado às avaliações externas, conteúdos (ementas), formas de avaliação dos estudantes formatadas pela instituição, etc. Quanto ao corpo administrativo da escola, encontramos o cenário, delineado na primeira parte, da migração (e gratificação financeira, política, social) do intelectual para o burocrata, do professor ao gestor, consolidando formas de manutenção e rodízio do poder (reitorias, diretorias, chefias, coordenações) em disputas interburocráticas que expressam como diferentes grupos lutam no interior de determinada instituição.

A burocracia como classe social faz parte da luta de classes. A classe burocrática é contrarrevolucionária. Seja na sua expressão como classe auxiliar da burguesia, seja na sua expressão radicalizada, com desejo de autonomizar-se, como é o caso da ideologia bolchevique – o que explica parte da crescente produção acadêmica sobre os pedagogos russos ou soviéticos, ou seja, a radicalização que se apresenta como revolucionária, contudo, objetivando a conquista do poder do estado.

Neste cenário, quais são as posições, os enfrentamentos, que o militante autogestionário deve realizar, como trabalhador da educação? O militante autogestionário reconhece a escola como espaço da luta cultural e política. Contudo, a ideia de busca de hegemonia em instituições de educação (escolas, Institutos Federais, Universidades), sobretudo pela tão propalada tese da “contra-hegemonia” interna, típica de burocratas, em busca de cargos, não é coerente. A luta cultural e política se dá pela crítica radical do estado, das instituições, do modo de produção capitalista e da burocracia. Nesse sentido, a militância autogestionária pode estar na escola, contudo, não é ingênua e reconhece que precisa revolucionar a totalidade de instituição escolar com vistas à totalidade da sociedade capitalista.


Ao militante autogestionário cabe a ação no interior do espaço de trabalho pela crítica radical e pela demonstração da possibilidade de outra forma de sociedade, sobretudo, em momentos de radicalização da luta de classes ou das lutas na instituição escolar.




[1] Moisey Mikhailovich Pistrak nasceu em 1888, sendo preso e assassinado em 1937. Não há grandes informações sobre sua trajetória política e intelectual. Formou-se em Físico-Matemática no ano de 1914 e era doutor em Ciências Pedagógicas. Outras informações já decorrem de sua atuação após 1917. Em 1918 ingressou no Comissariado Nacional de Educação, o NarKomPros, quando trabalhou na Escola-Comuna Experimental-Demonstrativa Lepechinskiy. No mesmo ano em que ingressa no Partido Comunista publica Fundamentos da escola do trabalho. Outros dados são de 1931, quando atua no Instituto de Pedagogia do Norte do Cáucaso e 1936, quando se torna diretor do Instituto Central de Pesquisa Científica de Pedagogia, ligado ao Instituto Superior Comunista de Educação, órgão do PCUS.

[2] Recentemente, com a edição de parte de suas obras, até então inéditas por aqui, ao lado da publicação de outros pedagogos e ideólogos bolcheviques, como Viktor Shulgin (1894-1965) e Nadezhda Krupskaya (1869-1939). Referimo-nos aos seguintes livros: PISTRAK, Moisey. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2011. PISTRAK, Moisey. (org). A Escola-Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2013. PISTRAK, Moisey. Ensaios sobre a Escola Politécnica. São Paulo: Expressão Popular, 2015. SHULGIN, Viktor. Rumo ao politecnismo (artigos e conferências). São Paulo: Expressão Popular, 2013. KRUPSKAYA, Nadezhda. A construção da Pedagogia Socialista. São Paulo: Expressão Popular, 2017. Nossa síntese crítica aos estudos publicados no Brasil, sobretudo da área de Educação/Pedagogia, sobre parte desses autores, se encontra na terceira nota de rodapé do artigo GOLOVATY, Ricardo. A pedagogia socialista de Moisey Pistrak no centenário da revolução russa: contribuição pelo olhar da história e da sociologia da educação, In: História e Cultura. Unesp, Franca, v.6, n.1, março 2017, p.213-240.

[a íntegra do artigo será lançada em breve, na revista Enfrentamento] 




quinta-feira, 1 de março de 2018

STF, BURGUESIA AGRÁRIA E LUTA DE CLASSES

TEXTOS E DEBATES


STF, BURGUESIA AGRÁRIA E LUTA DE CLASSES


Edmilson Borges da Silva

No dia de ontem, o STF (Supremo Tribunal Federal) legitimou o presente do governo Dilma para o agronegócio (a burguesia agrária).  Isso demonstra o significado do aparato judiciário do Estado capitalista: está a serviço da burguesia, o que não é novidade.

O STF decidiu no último dia de fevereiro (28) pela constitucionalidade da maioria dos pontos do novo Código Florestal. Alguns itens questionados foram mantidos, entre eles, a anistia aos desmatadores. De 2012 até os dias atuais, o desmatamento, que já era grande, mais que dobrou. O STF fez o que lhe cabe neste latifúndio, legitimar e legalizar os interesses da classe dominante.

Lutar contra a destruição organizada e deliberada do capitalismo é o que tem pra hoje, pra ontem e para amanhã. Os ambientalistas, que estão sempre construindo acordos com as empresas, não querem entender isso.