sábado, 29 de agosto de 2020

Voto Nulo Autogestionário e Coerência Revolucionária



VOTO NULO AUTOGESTIONÁRIO E COERÊNCIA REVOLUCIONÁRIA
Rubens Vinícius da Silva 

        Num momento marcado pela irracionalidade, moralismos e quase total falta de disposição para leituras e reflexões, inicio este pequeno texto afirmando de antemão que existem distintas formas de voto nulo¹. Uma delas em especial aponta para a crítica total da sociedade capitalista e suas instituições: refiro-me à luta pelo voto nulo autogestionário. A luta pelo voto nulo autogestionário que o Movaut - Movimento Autogestionário defende coloca que este se trata de um momento (um meio) para um objetivo final (um fim último). Dessa forma, a crítica radical dos partidos e da democracia burguesa é um meio, uma expressão coerente da luta pela sociedade autogerida que é o objetivo final da luta pelo voto nulo autogestionário.

        Logo, não se trata de uma questão conjuntural ou imediata: inclusive, a polarização burguesa atual (focada numa recusa acrítica à figura individual do presidente e seus aliados, o que aponta para o reforço da ilusão eleitoral) tem levado muitos indivíduos honestos a adotarem o voto no mais ou menos “ruim”, perpetuando e reforçando as ilusões de um “salvador” da política institucional no capitalismo. Obviamente que toda esta nuvem de fumaça é de interesse da burguesia e das suas classes auxiliares, incluindo aí os burocratas de partido que aspiram ou ascendem aos cargos no poder estatal, que é o poder político burguês. Isso oculta o fato de que todos os governos no capitalismo existem para manter intocáveis as relações de exploração e dominação de classe e demais relações sociais, que são relações entre classes, marcadas pela luta de classes.

        Os governos do PT (que inclusive nos dois mandatos de Lula, foram apoiados pelo então deputado federal Bolsonaro e o partido que na época fazia parte, o PP) assim como os governos antes e pós-PT foram e serão os fieis serviçais da exploração e dominação capitalista. Não importa em qual das instâncias (municipal, estadual e federal), os governos e seus opositores de plantão continuarão criminalizando a luta das classes trabalhadoras – do proletariado em especial – e setores contestadores quando estas saírem de seu controle. Seja sabotando greves selvagens e lutas autônomas, seja minando as expressões políticas e organizações do proletariado revolucionário.

       Todos os governos servem a este propósito: garantir as condições necessárias para a reprodução das relações sociais capitalistas. São os agentes reais do estado capitalista, a associação que faz valer os interesses comuns e os negócios das distintas frações da burguesia. Claro que há especificidades nacionais e regionais em cada governo e instância (municipal, estadual, federal) ao longo da história do capitalismo. Mas isso não invalida o fato de que a mutação formal e especificidade local carregam consigo a permanência do essencial: fazer valer os interesses e cumprir as tarefas políticas e econômicas da classe capitalista.

       Se ficarmos nesses maniqueísmos, chavões e adjetivos (o que só evidencia a miséria intelectual, psíquica e cultural reinante na sociedade brasileira) do político, partido, governo X ou Y continuamos a perder de vista a totalidade e os interesses de classe do proletariado, a classe revolucionária da sociedade capitalista. Isso porque todos os partidos políticos (e dentro deles quem manda é a burocracia partidária) são organizações que reproduzem a divisão social do trabalho no seu interior e têm como objetivo conquistar o poder estatal.

      E isso significa amortecer a luta de classes e a luta proletária em especial, impedindo ou então cooptando as formas organizacionais das classes inferiores, setores contestadores e, por conseguinte, do proletariado: isso porque quando esta classe se autonomiza e expressa seus interesses imediatos e históricos, avança da busca por melhores condições de vida nas relações de produção capitalistas para a luta pela abolição destas mesmas relações de produção e suas formas sociais correspondentes.

        A história das lutas demonstra que toda vez que o proletariado e as classes inferiores conseguiram concessões da classe capitalista foi com base numa luta encarniçada, e inclusive contra os partidos: o caso recente no Brasil talvez possa não evidenciar este processo, mas as formas organizacionais criadas historicamente pela classe operária mundo afora foram aqui inspiração para a ação por setores contestadores², em especial no início deste século XXI.

       Em síntese, a luta pelo voto nulo autogestionário (luta, pois se vincula ao objetivo final, que é a autogestão social, e não uma simples campanha) difere das demais formas de voto nulo, pois: a) não visa anular as eleições e sim criticar a democracia burguesa, o processo eleitoral e a sociedade capitalista como um todo; b) não se dirige como oposição aos candidatos e aos partidos do momento e sim faz a denúncia da burocracia partidária em geral, explicita seus vínculos com a reprodução do capitalismo e propõe a constituição de novas formas de organização, antagônicas aos partidos políticos; c) faz parte do processo mais amplo de luta pela superação do capitalismo, do qual a democracia burguesa, os partidos e o sistema eleitoral são partes integrantes. Dessa maneira, não se trata de uma atitude individual isolada, mas antes de um momento constitutivo do processo de luta mais amplo: a luta pelo voto nulo autogestionário faz parte da luta pela autogestão social, pois está articulada ao projeto revolucionário e à classe revolucionária de nossa época, o proletariado.

        Assim, o voto nulo autogestionário é a ferramenta de luta contra a democracia burguesa e uma forma de demonstrar que somente através da autonomização do proletariado será possível combater radicalmente o conjunto das relações sociais capitalistas. Tal processo precisa se articular com as demais lutas nas demais esferas da vida social, generalizando novas relações sociais, superiores àquelas que os entusiastas da democracia e do voto se esforçam em legitimar visando seguir como classe auxiliar da burguesia. Votemos nulo: lutemos pela autogestão social!

Notas:


¹ Dependendo de cada eleição e ressaltando que no Brasil o voto consiste numa obrigatoriedade, há aqueles que votam nulo por não se sentirem “representados” pelos candidatos, assim como há quem vote nulo por orientação partidária específica, quem vota nulo visando anular o pleito eleitoral, dentre outras formas. Assim, a luta pelo voto nulo autogestionário difere destas manifestações individuais ou então coletivas que não apontam para a denúncia da sociedade capitalista e para a articulação entre a crítica do processo eleitoral, dos partidos e da democracia burguesa em sua totalidade com a luta pela superação do capitalismo via revolução autogestionária. Sobre isso, ver a edição especial da Revista Enfrentamento lançada em 2010 e dedicada exclusivamente ao processo eleitoral, à farsa da democracia burguesa e às alternativas propostas. 

² Aqui nos referimos às lutas que emergiram contra o aumento das tarifas de transporte coletivo durante a primeira década deste século, bem como àquelas que se desenvolveram na forma de ocupações de escolas durante os anos 2010. A este respeito conferir Maia (2016). 

Referências


REVISTA ENFRENTAMENTO, n. 8, jan./jul. 2010. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/enf/issue/view/Revista%20Enfrentamento%20N%C2%BA%208/showToc. Acesso em 26 de agosto de 2020.

MAIA, Lucas. Nem partidos, Nem Sindicatos: a reemergência das lutas autônomas no Brasil. Goiânia: Edições Redelp, 2016. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CONTRA OS PARTIDOS E SINDICATOS


CONTRA OS PARTIDOS E SINDICATOS


Rubens Vinícius da Silva


Escreveu Marx (1977, p. 3, itálico no original) na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel [1843]: "Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade: no dia do seu enterro". Qual a relação entre este fragmento e o modo como os partidos e sindicatos buscam se relacionar com as classes inferiores e setores contestadores da sociedade moderna?

A resposta a tal questionamento nos remete ao seguinte: nunca é demais lembrar que todos os burocratas de partidos e sindicatos são "pelegos[1]", sejam eles ocupantes ou aspirantes, conservadores ou progressistas. A burocratização e mercantilização destas duas formas organizacionais é algo irreversível; a relação entre dirigentes e dirigidos que as fundamenta é uma das relações sociais fulcrais das sociedades classistas.

Os seus interesses enquanto fração de classe auxiliar da burguesia (a classe dominante no capitalismo) consistem em impedir que as classes inferiores superem estas formas burocráticas de organização, que ironicamente foram criadas pela classe operária e há mais de um século servem para a reprodução e consolidação do capitalismo. A história do movimento operário está repleta de exemplos onde os partidos e sindicatos foram os principais agentes da contrarrevolução, ao lado da classe capitalista e das suas classes auxiliares.

Dentre outras formas, a miséria contemporânea do bloco progressista[2] se manifesta no desespero eleitoral e na necessidade de controlar, amortecer ou cooptar as formas de auto-organização das classes inferiores e setores contestadores da sociedade capitalista. Do mesmo modo, pode ser observada na busca incessante por legitimar a necessidade da organização sindical (seja nas direções ou nas patéticas "oposições de luta", que só servem como justificativa para ascender à burocracia sindical e manter a apatia e passividade das "bases"), a qual também há mais de um século se revela uma forma de organização antagônica à luta pela autoemancipação humana.

Ambas as organizações são fundadas numa rígida e complexa divisão social, reproduzindo o capitalismo no seu interior. No interior destas organizações emerge um conjunto de funcionários especializados, os quais passam a possuir interesses próprios, vinculados à sua autorreprodução enquanto fração da burocracia. Ao lado disso, os burocratas de partidos e de sindicatos promovem um processo de autovaloração, enaltecendo suas ações com o fim de justificar sua existência. Tal processo caminha em conjunto com o processo de simulação-dissimulação: os burocratas partidários e sindicais do bloco progressista dizer representar os interesses das classes trabalhadoras, mas na verdade estão perseguindo seus interesses enquanto fração de classe auxiliar da burguesia. Desta forma, podemos afirmar que os partidos são estados em potencial e os sindicatos são organizados nos moldes da democracia burguesa, uma das mais sutis ideologias e formas de dominação de classe.

Os partidos políticos só têm um objetivo: tomar o poder e exercê-lo. Os sindicatos possuem horror às relações de produção comunistas, pois a autogestão social significa o fim de sua existência. O proletariado revolucionário e seus aliados têm interesses maiores e mais urgentes: a sua libertação, na forma de criação, generalização e articulação da autogestão de suas lutas, determinação fundamental para a autoemancipação humana.


Referências

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.

SILVA, José Santana.  Sindicalismo: da expectativa revolucionária à conformação burocrática. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020.

VIANA, Nildo. Blocos sociais e lutas de classes. Revista Enfrentamento, ano 10, n. 17, jan/jul. 2015. Disponível em: https://redelp.net/revistas/index.php/enf/article/view/960/830



[1] Na tradição do sindicalismo brasileiro, termo que caracteriza as direções sindicais que explicitamente buscam conciliar os interesses entre a classe capitalista e determinada fração das classes trabalhadores. Sobre o processo de burocratização do sindicalismo, que sepultou de modo inevitável quaisquer expectativas revolucionárias a respeito desta organização, consultar Silva (2020).

[2] Os blocos sociais são as formas mais organizadas, conscientes e ativas das classes sociais (não devendo ser confundidos com estas), no caso das classes fundamentais (burguesia e proletariado), ou de seus setores mais autonomizados, no caso da burocracia e seus aliados. O bloco progressista reúne frações da burocracia partidária e sindical popularmente conhecidos como “de esquerda”, ou seja, os setores destas frações de classe que dizem “representar” os interesses do proletariado e demais classes inferiores. Acerca dos blocos sociais, conferir o texto Blocos sociais e luta de classes, de Nildo Viana, publicado na Revista Enfrentamento, ano 10, n. 17, jan/jul. 2015. Disponível em: https://redelp.net/revistas/index.php/enf/article/view/960/830.