quarta-feira, 6 de abril de 2022

O Significado da “Greve” Feminista



O Significado da “Greve” Feminista

Jaciara Veiga*


A cada 8 de março é celebrado o “Dia Internacional da Mulher”, e isso todo mundo sabe. Todavia, o que parece ser desconhecida é a verdadeira origem desta data. A origem do 8 de Março está ligada à luta de classes. Ele nasceu como um dia anual de mobilização que buscava a unidade da classe operária e seus objetivos, fossem homens ou mulheres. O "Dia Internacional da Mulher", na realidade, surge como parte do movimento pela emancipação das classes trabalhadoras em geral. A luta das mulheres proletárias, contra sua exploração e subordinação, estava associada à luta dos homens de sua classe, deixando claro, deste modo, a unidade de interesses das mulheres e homens das classes trabalhadoras. As trabalhadoras lutaram por questões comuns à classe proletária, ao mesmo tempo que apresentaram reivindicações e exigências que lhes diziam respeito enquanto mulheres, donas de casa e mães [1].

Todavia, o 8 de Março foi apropriado e vem perdendo cada vez mais o seu significado original. Seu caráter de classe tem sido substituído por um caráter subjetivista [2], onde os interesses particulares de alguns indivíduos do grupo social das mulheres se colocam como interesses das mulheres em geral, perdendo de vista sua origem operária. Este é o caso das manifestações que tem ocorrido nesta data, como a “greve feminista”, organizada por intelectuais e ativistas feministas [3], cuja proposta é uma mobilização que una mulheres de toda parte do mundo, bem como os diferentes setores do feminismo — uma mobilização com uma “agenda comum” baseada nas “múltiplas identidades” das mulheres [4].

E a greve, qual a sua origem? O movimento grevista surge como instrumento de luta da classe operária, e expressa uma ruptura com as relações sociais vigentes, e apontam para a constituição de uma nova sociedade. A greve é a principal forma de luta dos trabalhadores; é uma ação proletária que realiza uma mobilização e organização dos trabalhadores em determinada unidade de produção ou categoria profissional, visando despertar a consciência coletiva dos trabalhadores para as más condições de trabalho, os baixos salários etc. Geralmente, ela assume um caráter de paralisação que pode ser seguida por ocupação da unidade produtiva. Por conseguinte, os proletários além de tomarem o local de produção, também passam a produzir e gerir o processo de produção como um todo, iniciando, assim, um processo de autogestão da produção. A greve é, portanto, a forma mais eficiente de pressão operária sobre o capital, pois compromete a extração de mais-valor e a acumulação de capital, permitindo nesse processo um avanço da consciência e a constituição de novas relações sociais [5].

Posto isso, nos perguntamos: qual o significado da “greve” feminista? O primeiro ponto a ser destacado é que a manifestação chamada de “greve”, organizada pelas feministas, é uma mobilização de parte do movimento feminino [6]. Por conseguinte, se trata de um movimento de um grupo social e não de um movimento de classe social. Os movimentos de grupos sociais são essencialmente diferentes dos movimentos de classes sociais — suas reivindicações são de caráter grupal, apesar de se articularem a alguns interesses gerais ou universais; o interesse grupal é a transformação da situação do grupo, rompendo com aquilo que gera sua insatisfação. Quanto aos interesses dos movimentos de classe, estes são, evidentemente, interesses de classes [7].

Em se tratando dos movimentos sociais, estes são hegemonizados pelas tendências conservadora e reformista, expressão do bloco dominante e do bloco progressista, respectivamente. Neste caso, diferentemente das classes sociais, não apontam para a transformação social radical. Ao contrário, colaboram com a reprodução ou com reformas no interior do capitalismo. As formas de luta assumidas pelas classes sociais são indissoluvelmente ligadas à sua existência e relação com as outras classes. A greve é uma arma de luta do movimento operário, que a utiliza por sua eficácia e porque ela atinge diretamente a classe antagônica (classe capitalista). Não é, portanto, uma negociação entre empregadores e empregados, por melhorias. Nesse sentido, podemos afirmar que os movimentos sociais não fazem greve, mas sim ocupações, manifestações, boicotes etc. [8].

A “greve” feminista, na verdade, é uma manifestação na qual os objetivos são fundamentalmente de caráter grupal, apresentando reivindicações que supostamente seriam de interesse comum a todas as mulheres. Com isso, se oculta o pertencimento de classe das mulheres — o grupo das mulheres é heterogêneo, isto é, é composto por mulheres de distintas classes sociais que, por sua vez, gera interesses também distintos, bem como formas específicas de se manifestar. Logo, a “greve” feminista possui um fim em si mesmo, uma vez que propaga uma articulação da luta das mulheres contra sua “opressão específica”, já que esta estaria além das classes.

Uma mobilização só de mulheres, como a que é proposta pelas feministas, e que coloca os interesses específicos acima dos interesses de classe, não oferece risco ao capital, pois não compromete a extração de mais-valor e, por conseguinte, a acumulação de capital. São reivindicações que não ultrapassam os limites da sociedade capitalista, mas tão somente podem gerar microrreformas, cujo efeito é paliativo e que só atenderão a demandas específicas, reforçando a integração de parte do grupo das mulheres à lógica do capital. E isso não interfere na manutenção das relações sociais capitalistas, mas tão somente consolida e reforça as relações de classes, que são fundamentadas na exploração, dominação e alienação.

A greve operária é a principal forma de luta da classe operária (classe revolucionária de nossa época, e que é composta por homens e mulheres). Seu vínculo com o processo de transformação radical da sociedade capitalista está explícito tanto nos seus objetivos, quanto em si mesma, pois esboça novas relações sociais, novas formas de auto-organização, desenvolvimento de novos valores, bem como da consciência revolucionária. Já a “greve” feminista não passa de uma ilusão, uma apropriação e deformação do principal instrumento de luta da classe operária, em prol de interesses das próprias feministas, que é o de amortecer os conflitos de classe, diluindo-os em questões de ordem individual (grupal), despolitizando as lutas sociais.

A luta das mulheres das classes trabalhadoras deve continuar sendo ao lado de seus companheiros de classe, e esta, por sua vez, deve estar articulada ao projeto autogestionário. Somente a articulação com o proletariado revolucionário e setores contestadores, em torno da luta autogestionária (na forma de autogestão das lutas, criação de organizações autárquicas etc.), é que se poderá alcançar a sociedade futura e radicalmente diferente, ou seja, a sociedade autogerida.


Notas:

* Militante Autogestionária.


[2] O dia das mulheres é ressignificado pelo paradigma subjetivista (ou subjetivismo). “O subjetivismo é um paradigma que coloca o sujeito como eixo fundamental da análise e que se desdobra na ideia de pluralismo (ou diferença, entre outros nomes possíveis) do sujeito cognitivo, fragmentação da realidade e saber fragmentado. (Cf.: Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas, Nildo Viana, 2019); O subjetivismo joga para o sujeito a responsabilidade da produção de ideias, de ação política, etc. O sujeito pode ser tanto o indivíduo do liberalismo e neoliberalismo, quanto os grupos sociais que se tornam “múltiplos sujeitos”, que segundo muitos poderiam ser “revolucionários”, mas segundo a maioria, devem falar por si mesmos. Assim, as ideologias filiadas ao paradigma subjetivista, como o neoliberalismo, pós-estruturalismo, multiculturalismo, bem como as diversas formas de manifestação do culturalismo, apontam para a ideia de que são os sujeitos, seus desejos, suas necessidades, sua ação, sua razão, seus sentimentos, sua identidade, que constituem o elemento fundamental e que explicam os movimentos sociais, os indivíduos etc. (Cf.: VIANA, 2018).

[3] A primeira “greve” foi impulsionada pelo coletivo argentino Ni Una Menos, composto por escritoras, poetas, editoras, jornalistas, artistas e acadêmicas que se uniram para lutar contra a “violência de gênero” (Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=bG1S8prJ-wI&t=112s&ab_channel=TheInterceptBrasil).

[4] O feminismo aparece como “movimento universal” em favor de todas as mulheres, defendendo uma suposta unidade e desconsiderando as diferenças existentes entre elas; não leva em consideração as diversas diferenças existentes entre elas, mas ao contrário, se baseia nas semelhanças, defendendo uma suposta unidade entre as mulheres. As mulheres estão divididas em classes sociais, entre outras divisões que promovem várias diferenças e interesses, derivados de seu pertencimento de classe, entre outras subdivisões. Entre as mulheres não existe uma unidade, elas não formam um movimento homogêneo.

[5] Não estamos tratando aqui das greves legalizadas e impulsionadas pelas organizações burocráticas, tais como sindicatos, partidos (que são eleitorais, oportunistas, salariais), mas sim, das greves radicais que são instrumentos de luta da classe operária contra a exploração e o trabalho alienado (Cf.: https://www.academia.edu/41945207/A_Greve_Como_Direito_Coletivo_dos_Trabalhadores; http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/autores/Viana,%20Nildo/Manifesto%20Autogestionario%20Nildo%20Viana.pdf).

[6] O movimento feminino, uma vez consolidado, gera ramificações, e estas são derivações dele, mas não ele em sua totalidade. Este é o caso do feminismo, uma ramificação cultural hegemônica do movimento feminino, e que se apresenta como sendo ele em sua totalidade. Ao falarmos de movimento de mulheres, logo vem à mente o “movimento feminista”. Sua hegemonia no interior do movimento feminino tem influenciado nos objetivos, forma de mobilização e insatisfação das mulheres. No entanto, não podemos confundir o movimento social em sua totalidade, o movimento feminino, com sua ramificação, o feminismo.

[7] Os movimentos sociais tendem a lutar pela transformação situacional, ou seja, pela transformação da situação do grupo social que constitui o movimento social específico (Cf.: https://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/122).

[8] “As relações entre os grupos sociais não são antagônicas, ou seja, não são fundamentadas na exploração e dominação, como no caso das classes fundamentais. Mesmo no caso das demais classes sociais, subsiste a diferença na relação, pois ela é determinada diretamente pela divisão social do trabalho e distribuição de riqueza na sociedade e não indiretamente. A relação das classes sociais ocorre via divisão social do trabalho e a dos grupos sociais em outras formas de relações sociais. Essa é uma diferença essencial e constitui todas as demais diferenças, tais como interesses, formas de ação etc.” (Cf.: https://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/122).