segunda-feira, 13 de julho de 2020

COMO ASSIM VOCÊ NÃO É FEMINISTA?



COMO ASSIM VOCÊ NÃO É FEMINISTA?



Jaciara Veiga

Ao dizer que não sou feminista, logo surgem algumas perguntas já com um “ar de reprovação”, sem ao menos buscar saber o porquê de tal afirmação: Como assim você não é feminista? Então você é contra a luta pela igualdade das mulheres em relação aos homens? Como uma mulher pode não ser feminista?

Parece natural que a reação da grande maioria das pessoas seja exatamente essa, a de estranhamento diante do que parece óbvio: “toda mulher é/deve ser feminista”. Isso acontece porque o feminismo é conhecido como o movimento que luta em favor das mulheres, de todas as mulheres; um movimento que reivindica a igualdade social e política entre os sexos. Apesar de hoje se falar de feminismo no plural (os feminismos), todos eles, com raras e ambíguas exceções, consideram a mulher — e não o proletariado — o sujeito da ação política, cujo interesse fundamental seria a luta pela igualdade de direitos em relação aos homens, uma luta pelo fim de sua opressão[1] numa sociedade “machista” e “patriarcal”. Esse estranhamento ocorre justamente por se acreditar que o movimento de luta das mulheres é homogêneo, isto é, desconsiderando que as mesmas pertencem à classes sociais distintas, desvinculando suas lutas das demais relações sociais e, por conseguinte, reduzindo-as meramente a uma relação entre homem-mulher, onde sua opressão seria causada pela “maldade inata do homem”. Nesse sentido, cria-se a ilusão de uma unidade entre as mulheres que através de interesses comuns, independentes dos de sua classe, constroem uma “fraternidade de sexo”, uma “sororidade”.

O feminismo se coloca como representante dos interesses das mulheres como um todo, mas, na verdade, representa os interesses das mulheres das classes superiores[2]. Apesar de estar ligado ao movimento das mulheres em geral, o feminismo é uma concepção ambígua (que pode se manifestar sob a forma de ideologia, doutrina ou representações) que diz representar os interesses das mulheres como grupo social em sua totalidade, mas  no fundo, representa os interesses individuais, setoriais ou das mulheres de determinadas classes sociais)[3]. Não é possível, portanto, falar em um movimento unitário das mulheres em uma sociedade dividida em classes sociais.

De fato, as mulheres sempre se rebelaram contra a situação social de opressão e subordinação a qual estão submetidas, e isso ocorreu durante um longo processo histórico e se desenvolveu sob diversas formas[4]. Contudo, o movimento de luta das mulheres tem sido por natureza um movimento fragmentado, com múltiplas manifestações, objetivos e pretensões diversas. O movimento feminino é considerado por muitos como homogêneo. No entanto, ele é heterogêneo e possui ramificações com variações em suas manifestações, como é o exemplo do feminismo[5].

Deste modo, não podemos confundir o movimento social em sua totalidade, o movimento feminino, com uma de suas ramificações, o feminismo[6]. É imprescindível fazermos a distinção entre movimento feminino e feminismo, para compreendermos a diferença entre ambos e superarmos o equívoco que considera todas as lutas, históricas e concretas das mulheres como sendo lutas feministas.

Apesar do feminismo ter mais destaque e hegemonia entre as mulheres das classes superiores, assim como nos meios acadêmicos e de comunicação e suas exigências aparentemente serem radicais, não se deve perder de vista o fato de que as feministas não podem e não querem, devido aos seus interesses de classe, lutar pela transformação radical da sociedade, sem a qual a libertação das mulheres não se efetivará. O feminismo é expressão da classe burguesa em oposição ao movimento feminino revolucionário, cuja expressão é a da classe operária. Seu objetivo implica uma emancipação particular (somente das mulheres), uma vez que afirma que o agente da libertação da opressão é o próprio indivíduo oprimido. Logo, a libertação das mulheres seria obra das próprias mulheres. A tentativa de associar a luta da mulher trabalhadora à luta feminista, não passa de uma estratégia que desvia da luta de classes, negando o proletariado como único agente histórico revolucionário.

  A luta das mulheres trabalhadoras não pode ser confundida com a ideologia feminista que busca uma “igualdade” em conformidade com a ideologia dominante, ou seja, a integração das mulheres no capitalismo “reformado”, através de conquistas parciais, tais como a “representatividade” nas instituições burguesas que, aliás, não serão alcançadas por todas as mulheres, mas criam a ilusão de que é possível encontrar “seu lugar” na sociedade. Sem dúvida alguma, mesmo que estas reformas sejam realizadas, a determinação fundamental da subordinação da mulher não será eliminada.

Então deve-se abandonar as lutas especificamente femininas em prol da luta de classes? É óbvio que a resposta é não. O que está sendo combatido é a forma como isso tem sido feito — além de isolar as lutas das mulheres, tornando-as autônomas e independentes das demais lutais sociais e acima da luta de classes, defende que a “maldade inata do homem” é a causa de sua opressão. Um equívoco que contribui muito mais para a reprodução das relações de subordinação do que para uma transformação radical dessas mesmas.

A luta, entretanto, deve ser classe contra classe e não sexo contra sexo[7]. A substituição da luta de classes pela luta entre os sexos é um verdadeiro entrave para a libertação das mulheres. É por isso que a luta das mulheres trabalhadoras é ao lado de seus companheiros de classe, os homens proletários, bem como de todos os homens e mulheres que se engajam na luta pela revolução, e não ao lado das feministas, mulheres que expressam os interesses da classe antagônica à sua. Para lutar pela emancipação das mulheres não é preciso ser feminista, muito pelo contrário, deve-se combater o feminismo e seu caráter burguês, pois somente assim, as trabalhadoras poderão construir um movimento, no qual os interesses de classe estejam acima dos interesses particulares, pois é somente através da transformação social total, que as mulheres, em particular, e a humanidade, em geral, poderá se libertar.

Combater o capitalismo, colocando em primeiro plano a luta pela autogestão social ao lado do movimento operário, segue sendo uma árdua, mas necessária tarefa das mulheres trabalhadoras.



[1] Não há como negar que na sociedade capitalista existe opressão e subordinação da mulher e que ela passou por diferentes formas e graus, mas que ainda continua existindo. O grande problema da mulher no capitalismo, bem como em toda sociedade de classe, é a subordinação. A opressão nas sociedades classistas atinge tanto mulheres quanto homens, mas a opressão da mulher segue sendo um problema maior que a dos homens, pois ela é acompanhada da subordinação, transformando-se em algo quantitativa e qualitativamente diferente. Ver Marxismo, Antropologia e Subordinação da Mulher, Nildo Viana in A Opressão das Mulheres no passado e presente – para acabar no futuro: uma perspectiva marxista, Christophe Darmangeat, 2017.

[2] Sobre classes superiores e classes inferiores ver “Classes superiores e classes inferiores”, Viana, 2019.

[3] Sobre movimento feminino e feminismo ver:

Movimento Feminino e Feminismo,  Marcus Gomes:  https://redelp.net/revistas/index.php/rms/article/view/06gomesms03;

O Feminismo como Ideologia Reformista, Florence Oppen:  http://phl.bibliotecaleontrotsky.org/arquivo/mv06neept/mv 06neept-11o.pdf;

Por qué no soy feminista: Un manifiesto feminista, Jessa Crispin.  Madrid: Lince, 2016;

Os Fundamentos Sociais da Questão Feminina, Alexandra Kollontai:  https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1907/mes/fundamentos.htm;

Coletivo 8 de Março: http://coletivooitodemarco.blogspot.com/

Nuevo Curso: https://nuevocurso.org/diccionario/feminismo/

Barbaria: http://barbaria.net/tag/critica-al-feminismo/

[4] Concordamos com a tese de que a opressão das mulheres tem sua origem nas sociedades classistas, negando, portanto, a naturalização da opressão universal da mulher.

[5] Que, por sua vez, é dividido em várias tendências: “liberais”, “radicais”, “existencialistas”, “marxistas”, “anarquistas”, “socialdemocratas”.

[6] Os movimentos sociais produzem diversas ramificações, isto é, um movimento social pode ser considerado um caule do qual brotam diversos ramos. Essas ramificações, por sua vez, são derivações dos movimentos sociais. Apesar de muitas vezes serem confundidas com um movimento social em si, são partes dele sem ser sua totalidade ou ele mesmo. Ver: Os Movimentos Sociais, Nildo Viana, 2016.

[7] Sexo contra sexo ou classe contra classe: https://www.marxists.org/portugues/reed-evelyn/ano/mes/sexo.htm

 


sexta-feira, 10 de julho de 2020

O ESPANTALHO FASCISTA DOS ANTIFASCISTAS E A LUTA CONTRA AS ILUSÕES DEMOCRÁTICAS




O ESPANTALHO FASCISTA DOS ANTIFASCISTAS E A LUTA CONTRA AS ILUSÕES DEMOCRÁTICAS



Guilherme Bachmann


A questão do combate ao fascismo volta a ser pauta generalizada após inúmeros acontecimentos, o que vem acirrando os nervos de diversos blocos sociais[1]. A pandemia e a queda da acumulação de capital já demonstravam a tendência de uma maior animosidade entre classes, blocos sociais, partidos etc. Este cenário gera uma tensão crescente, em especial entre o proletariado e demais classes inferiores, os quais ao longo dos sucessivos governos democráticos estão assistindo a piora cada vez maior de suas condições de vida (corrosão de direitos trabalhistas, arrocho salarial, etc.). Como se não bastasse, num contexto marcado por tal situação desesperadora, nos deparamos com um governo cujos discursos são marcados não pela conciliação, mas pela continuidade e insistência (até suas últimas consequências) na polarização, agora entre governistas e não-governistas. Assim, a aparência comedida que tanto caracterizava a burocracia governamental parece não mais existir: o presidente não mascara seu desprezo pela população (sobretudo em se tratando do proletariado e outras classes inferiores) e sim o escancara. Tal postura causa espanto, revolta e exalta os ânimos de indivíduos e setores influenciados pelas correntes de opinião e representações produzidas pelo capital comunicacional e pela ação do bloco progressista. Não é absurdo imaginar que se o governo moderasse o discurso a revolta seria menor, ainda que fossem mantidas as mesmas políticas.

Agora novamente se fala em defender a democracia. Os sociais democratas elegeram esta máxima como a salvação da humanidade, o triunfo supremo da civilização. Os leninistas a defendem como um melhor caminho para realizar sua tomada do estado. Os anarquistas cambaleiam tentando defendê-la enquanto tentam ter o mínimo de concordância com seus ideais anti-estatistas. Juntam-se todos a defender a democracia contra o “fascismo”. O antifascismo é esse bolo ideológico que aglutina parcela da classe proletária e do bloco revolucionário[2] para dentro de uma ação conservadora. É orquestrado e tocado pelas mesmas figuras carimbadas ao longo da história e seus resultados já são dados. Não é de se espantar que muita gente esteja revoltada com os dizeres e ações repulsivos do governo e do presidente. Também não surpreende que essa revolta esteja sendo direcionada para a defesa da democracia, pois o discurso democrático é o discurso da garantia de direitos, do respeito, da “egalité, fraternité, liberté”[3]. Parcelas significativas de diversas classes sociais percebem este discurso como possibilidade concreta de realização: “Hoje está ruim porque fascistas comandam o país, quando líderes democráticos assumirem as coisas irão melhorar. Quando reina a democracia, reina a liberdade”.

Junto da defesa da democracia vem as frentes democráticas e “antifascistas”, organizações políticas ou um conjunto delas que teriam o propósito de representar o interesse democrático da população. Clamam aos revolucionários, bem como aos lumpemproletários, proletários e demais classes subalternas que abracem a luta democrática. Imploram que se abandone as diferenças para lutar contra um “inimigo comum”, pois a ameaça iminente de uma ditadura totalitária colocaria em risco os interesses de classes e blocos sociais distintos. Tal ditadura, argumentam, já teria começado. Para garantir nossos direitos e nossa liberdade precisaríamos defender com unhas e dentes as instituições democráticas. Esta espécie de fetichismo com a democracia é, obviamente, um construto ideológico burguês. A defesa da democracia reforça a hegemonia burguesa, já que historicamente ela é apenas uma forma que a classe dominante tem para gerir seus interesses.

Esquecem-se, às vezes de propósito e às vezes não, que foi na democracia norte americana que morreu George Floyd. Esta mesma democracia que muito antes de Trump já causou todo tipo de dominação e violência ao redor do globo e dentro de suas fronteiras. É a democracia dos países de capitalismo imperialista que, diante das necessidades e interesses do capital bélico (em especial no caso dos EUA) promovem guerras de rapina (anos 1950 Coreia; anos 1960-70 Vietnam; anos 1980-1990 Oriente Médio e América Latina; anos 1940-1990 Guerra ‘Fria’) a fim de manter sua elevada acumulação de capital. Foi na democracia (também) que o Estado brasileiro subjugou populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas[4]. Foi na democracia que se prendeu Rafael Braga por portar uma garrafa de pinho sol e se aprovou a chamada lei “antiterrorismo”[5], que serve, basicamente, para reprimir de maneira mais eficiente os movimentos sociais que se busca criminalizar. É na democracia que se trabalha e morre sem o direito a tomar os meios de decisão de nossas vidas. Que interesse tem o proletariado em defender a democracia? Que benefício traz ao projeto revolucionário defender as instituições burguesas? Quando se prega aos quatro ventos o evangelho da “união de esquerda” e da “frente antifascista” esconde-se o fato de que, embora alguns interesses imediatos pareçam coincidir (não é do interesse do proletariado nem dos revolucionários um regime fascista), os objetivos concretos de tais frentes não apenas divergem daqueles dos revolucionários mas são antagônicos a eles. Em última instância aliar-se a estas organizações é aliar-se ao projeto burguês de sociedade, pouco importa se o discurso ideológico que adotam é mais moderado e revestido de liberalismo. Pouco importa também se os membros que compõe as frentes se auto intitulam “comunistas” ou “anarquistas”. É preciso ter em mente que quando se fala em fortalecer as “instituições democráticas” se está falando em fortalecer as instituições burguesas. Quando o objetivo é defender a democracia, se está a defender a sociedade capitalista. É essa mesma sociedade que irá combater com veemência qualquer tentativa revolucionária por parte do proletariado. Da mesma forma as frentes e uniões de esquerda combatem de toda maneira qualquer postura mais radicalizada de seus membros.

Precisamos romper com a lógica de olhar apenas o horizonte imediato, no qual tudo que se enxerga são aqueles que possuem, no momento, as ferramentas de dominação. Não há espaço para, apenas por causa das emoções que surgem diante dos absurdos do governo, abrir mão dos nossos interesses históricos, de um horizonte que aponte para outra sociedade, um horizonte revolucionário. É preciso mais do que nunca manter a crítica o mais radical possível, sem desviar para concessões reformistas. Realizar a defesa da democracia burguesa é abrir mão desse horizonte. Incentivar o proletariado e parte do bloco revolucionário a aderir a esta causa é trabalhar contra a superação desta sociedade, uma vez que se está trabalhando por sua manutenção. Não se trata de pensar que a classe proletária irá aderir ao projeto revolucionário em bloco de maneira imediata. Sabe-se dos limites do proletariado “em-si” que permanece subjugado pela ideologia burguesa e burocrática de nossos tempos. Também não se trata de desconsiderar as manifestações que surgem no Brasil como meras insurgências partidárias e reformistas. No momento o que ocorrem são revoltas espontâneas e organizadas sobre anseios comuns. Parte da população está revoltada, ainda que não tenha bem em mente contra o quê. Reconhecer os limites da consciência imediata do proletariado não significa negar o potencial concreto de sua elevação em classe autodeterminada (para-si) que será sempre uma possibilidade real enquanto existir capitalismo (consequentemente enquanto houver burguesia e proletariado). Cabe àqueles que defendem um projeto revolucionário justamente radicalizar e tencionar determinados setores, auxiliar na medida do possível o desenvolvimento deste processo. Isso inclui, também, abordar seu amigo e seu colega “antifascista” e dizer com todas as letras que ele está defendendo uma pauta conservadora. Não abrir mão da crítica e deixar claro quais os interesses por trás da ideologia do antifascismo, que é em última instância a manutenção da sociedade burguesa.

A luta contra o capital já é uma luta “antifascista”, na medida em que o fascismo é um fenômeno do capitalismo, mas ela também é uma luta “antidemocrática”. Há muito já dizia um velho barbudo alemão: “o poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia”. Nosso interesse não é manter este comitê nem lutar pelos assuntos comuns da burguesia. Nosso interesse é de superar por completo essa sociedade, de instaurar a autogestão social.



[1] Os blocos sociais são determinadas formas mais organizadas e conscientes de parcelas de classes sociais distintas que possuem programas e interesses comuns. Gravitam em torno do conflito das duas classes fundamentais (proletariado e burguesia) mas não devem ser confundidos com as mesmas.

[2] O bloco revolucionário é formado pelos indivíduos mais avançados do proletariado e membros de outras classes sociais (geralmente as classes desprivilegiadas) que aderem ao projeto revolucionário do proletariado.

[3] “Igualdade, fraternidade e liberdade”. Slogan utilizado durante a revolução francesa cujo conteúdo se dá na defesa de supostos direitos universais que viriam a ser garantidos pela república, em contraposição à “tirania” dos monarcas. Trata-se, historicamente, de um discurso burguês.

[4] Destacam-se, entre tantos acontecimentos, a construção da barragem de Belo Monte e as remoções forçadas para a realização dos megaeventos esportivos (copa do mundo e olimpíadas).

[5] Tanto a prisão de Rafael Braga quanto a aprovação da lei antiterrorismo curiosamente ocorreram durante o governo petista, assim como a construção de Belo Monte e as remoções forçadas mencionadas anteriormente. Hoje a mesma esquerda que um dia participou dessa violência de estado conclama o combate ao fascismo.


terça-feira, 7 de julho de 2020

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 11: A IMPORTÂNCIA DA AUTOFORMAÇÃO PARA A CONVICÇÃO REVOLUCIONÁRIA





A importância da autoformação para a convicção revolucionária

Gabriel Teles

A Autogestão Social é o maior e mais belo projeto político empreendido na história da Humanidade. Essa utopia concreta, que aponta para a emancipação humana, nos leva a necessidade de transformar radicalmente a totalidade das relações sociais derivadas da atual sociedade capitalista na qual vivemos, fundada na divisão entre classes sociais. Trata-se de uma nova sociedade radicalmente distinta, com um outro modo de produção, outras formas sociais e uma outra maneira de se viver e expressar nossas verdadeiras potencialidades enquanto seres humanos.
Aquele que almeja essa nova sociedade, a aurora da humanidade, busca contribuir com o processo revolucionário que nos leve até ela. O denominamos de revolucionário. O revolucionário é aquele que, como bem disse Carlos Marques em “O que é ser revolucionário?[1], luta e busca concretizar o projeto autogestionário, acima de seus interesses individuais. Assim, o revolucionário vincula o seu projeto de vida ao projeto revolucionário; se liga, numa atitude de coragem e convicção, aos objetivos históricos da classe social que possui os interesses e potencialidade de efetivar a revolução social, o proletariado. Tal atitude não é fácil: ser revolucionário, numa sociedade que respira o ar pesado das ideias dominantes, significa remar contra a maré num frágil barco sem hastilhas. Em momentos não-revolucionários, ser revolucionário é lutar contra quase tudo e todos, inclusive consigo mesmo, com nossos interesses individuais que eventualmente podem se chocar com os interesses históricos que buscamos expressar. A convicção, então, é fundamental; e um revolucionário só pode sê-lo se tiver convicção daquilo que acredita.
A convicção revolucionária é radicalmente distinta de uma opinião[2]. Uma mera opinião  política é tão frágil que com uma simples oscilação do indivíduo ou do meio que o cerca (condições políticas, arrefecimento de uma luta que o indivíduo faz parte, etc.), pode ser desfeita e cessar. Em muitos casos, a anedota sobre os jovens é correta: incendiário na juventude e bombeiro em idade adulta. Quem não conhece aquele conhecido ou amigo que, quando jovem ou dentro de um processo de intensificação das lutas sociais, torna-se um ardente militante, mas tão logo passa a sua fase de ressocialização (determinação fundamental da juventude) ou as lutas esmorecem, ele volta a ter atitudes conservadoras, a taxar de radicais aqueles que ainda continuam na luta ou aprofundam a sua perspectiva revolucionária? Se o indivíduo em questão só possui uma mera opinião frágil sobre a necessidade de mudar o mundo, será necessária pouco vento para que ele debande para uma visão mais moderada ou até mesmo conservadora. Esse indivíduo, no máximo, vai à reboque dos sabores e dissabores da dinâmica das lutas de classe, podendo conjunturalmente se radicalizar ou tornar-se mais conservador de acordo os ventos do cotidiano capitalista. As opiniões, enfim, estão na superfície da mentalidade do indivíduo, não descortinam os elementos e determinações mais profundos da mentalidade.
Esse exemplo, definitivamente, não aponta para um caráter revolucionário necessário a uma pessoa que busca a transformação social. Isso, exige, como dissemos, convicção. A convicção pode ser fundamentada em diversos processos sociais: sentimentos, valores, interesses, razão, etc. Diferentemente da opinião, a convicção está no âmago do indivíduo, elas são as “opiniões entranhadas” nos dizeres de Fromm e Maccoby. Dado ao seu caráter sólido e estruturado, é um dos guias elementares de um indivíduo.
Um revolucionário, que sempre votou nulo ou absteve-se de votar por acreditar que a democracia burguesa faz parte do conjunto das relações sociais que contribuem na reprodução do capitalismo, não irá mudar a sua militância porque na eleição X ou Y está um candidato mais reacionário e outro mais democrático (a velha questão da escolha do mal menor). Independente de quem se candidatar, o revolucionário tem consciência que esse processo não irá contribuir para acelerar o processo revolucionário; não há concessões e ilusões com aquilo que só irá retardar ainda mais a necessária autonomização do proletariado e das demais classes inferiores. O que é o "mal menor", em luta política, senão o prolongamento de um período até que o "mal maior" vença? A aposta, consciente e militante, na transformação radical da sociedade é muito mais realista do que realismo presentista.
Tal aposta exige a mais estruturada e mais importante das convicções para quem almeja uma sociedade radicalmente distinta: a convicção racional. As convicções fundadas racionalmente estão ligadas aos interesses da verdade e correspondem a realidade concreta. Não se alinha ao presentismo, não se ilude com o imediatismo e recusa o conjunturalismo. Isso, exige, evidentemente, formação revolucionária, ou melhor dizendo, autoformação revolucionária.
Sem autoformação não há convicção revolucionária. É impossível intervir na realidade sem antes compreendê-la e analisá-la de maneira que fiquem claros os interesses conflitivos da sociedade. A convicção revolucionária, então, parte, necessariamente, da perspectiva do proletariado, um dos elementos fundamentais do materialismo histórico-dialético, a principal arma intelectual fornecida pelo marxismo (expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado), para analisarmos a sociedade. A autoformação aponta para o desenvolvimento da consciência revolucionária do indivíduo, que contribui não só consigo mas com a sua intervenção nas lutas, seja de maneira organizada a partir de um coletivo ou individualmente. Essa autoformação se dá a partir da leitura, no interior das experiências práticas, lutas, discussões, etc. A sua manifestação mais desenvolvida é a teoria, que é expressão da realidade num universo conceitual que evidencia cada elemento constitutivo do real numa totalidade concreta. Quanto mais ela for desenvolvida, mais o movimento revolucionário como um todo tende a avançar e conseguir concretizar o seu processo.
Uma luta cultural efetiva só pode ser plenamente revolucionária se os indivíduos que a produzem estão armados pela crítica revolucionária e esta só pode ser adquirida a partir da autoformação, que contribui para conhecer a realidade concreta, suas tendências,  potencialidades, e os perigos das falsas promessas e ilusões dos que dizem estarem ao nosso lado (organizações burocráticas das mais diversas [partidos políticos, sindicatos, etc.], ideologias progressistas, etc.).
Assim, quanto mais temos elementos sobre a nossa realidade, mais a nossa prática política estará coerente e contribuirá com os fins revolucionários que nos propomos. Como bem disse Anton Pannekoek: a revolução não será o efeito de uma força física bruta, será sim uma vitória da consciência. Sem convicção revolucionária, não há práxis revolucionária. Somente a percepção e a convicção da necessidade de combater a sociedade desumanizada nos levará a humanização da sociedade.




[2] Sobre a distinção entre opinião e convicção, veja Cf. “Caráter Social de uma Aldeia” de Erich Fromm e Michael Maccoby e “As Representações Cotidianas e as Correntes de Opinião” de Nildo Viana (Cf. https://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/293/227)