A questão do combate ao fascismo volta a ser pauta
generalizada após inúmeros acontecimentos, o que vem acirrando os nervos de
diversos blocos sociais[1].
A pandemia e a queda da acumulação de capital já demonstravam a tendência de
uma maior animosidade entre classes, blocos sociais, partidos etc. Este cenário
gera uma tensão crescente, em especial entre o proletariado e demais classes
inferiores, os quais ao longo dos sucessivos governos democráticos estão
assistindo a piora cada vez maior de suas condições de vida (corrosão de
direitos trabalhistas, arrocho salarial, etc.). Como se não bastasse, num
contexto marcado por tal situação desesperadora, nos deparamos com um governo
cujos discursos são marcados não pela conciliação, mas pela continuidade e insistência
(até suas últimas consequências) na polarização, agora entre governistas e
não-governistas. Assim, a aparência comedida que tanto caracterizava a
burocracia governamental parece não mais existir: o presidente não mascara seu
desprezo pela população (sobretudo em se tratando do proletariado e outras
classes inferiores) e sim o escancara. Tal postura causa espanto, revolta e
exalta os ânimos de indivíduos e setores influenciados pelas correntes de
opinião e representações produzidas pelo capital comunicacional e pela ação do
bloco progressista. Não é absurdo imaginar que se o governo moderasse o
discurso a revolta seria menor, ainda que fossem mantidas as mesmas políticas.
Agora novamente se fala em defender a democracia. Os sociais democratas elegeram esta máxima como a salvação da humanidade, o triunfo supremo da civilização. Os leninistas a defendem como um melhor caminho para realizar sua tomada do estado. Os anarquistas cambaleiam tentando defendê-la enquanto tentam ter o mínimo de concordância com seus ideais anti-estatistas. Juntam-se todos a defender a democracia contra o “fascismo”. O antifascismo é esse bolo ideológico que aglutina parcela da classe proletária e do bloco revolucionário[2] para dentro de uma ação conservadora. É orquestrado e tocado pelas mesmas figuras carimbadas ao longo da história e seus resultados já são dados. Não é de se espantar que muita gente esteja revoltada com os dizeres e ações repulsivos do governo e do presidente. Também não surpreende que essa revolta esteja sendo direcionada para a defesa da democracia, pois o discurso democrático é o discurso da garantia de direitos, do respeito, da “egalité, fraternité, liberté”[3]. Parcelas significativas de diversas classes sociais percebem este discurso como possibilidade concreta de realização: “Hoje está ruim porque fascistas comandam o país, quando líderes democráticos assumirem as coisas irão melhorar. Quando reina a democracia, reina a liberdade”.
Junto da defesa da democracia vem as frentes democráticas e “antifascistas”, organizações políticas ou um conjunto delas que teriam o propósito de representar o interesse democrático da população. Clamam aos revolucionários, bem como aos lumpemproletários, proletários e demais classes subalternas que abracem a luta democrática. Imploram que se abandone as diferenças para lutar contra um “inimigo comum”, pois a ameaça iminente de uma ditadura totalitária colocaria em risco os interesses de classes e blocos sociais distintos. Tal ditadura, argumentam, já teria começado. Para garantir nossos direitos e nossa liberdade precisaríamos defender com unhas e dentes as instituições democráticas. Esta espécie de fetichismo com a democracia é, obviamente, um construto ideológico burguês. A defesa da democracia reforça a hegemonia burguesa, já que historicamente ela é apenas uma forma que a classe dominante tem para gerir seus interesses.
Esquecem-se, às vezes de propósito e às vezes não, que foi na democracia norte americana que morreu George Floyd. Esta mesma democracia que muito antes de Trump já causou todo tipo de dominação e violência ao redor do globo e dentro de suas fronteiras. É a democracia dos países de capitalismo imperialista que, diante das necessidades e interesses do capital bélico (em especial no caso dos EUA) promovem guerras de rapina (anos 1950 Coreia; anos 1960-70 Vietnam; anos 1980-1990 Oriente Médio e América Latina; anos 1940-1990 Guerra ‘Fria’) a fim de manter sua elevada acumulação de capital. Foi na democracia (também) que o Estado brasileiro subjugou populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas[4]. Foi na democracia que se prendeu Rafael Braga por portar uma garrafa de pinho sol e se aprovou a chamada lei “antiterrorismo”[5], que serve, basicamente, para reprimir de maneira mais eficiente os movimentos sociais que se busca criminalizar. É na democracia que se trabalha e morre sem o direito a tomar os meios de decisão de nossas vidas. Que interesse tem o proletariado em defender a democracia? Que benefício traz ao projeto revolucionário defender as instituições burguesas? Quando se prega aos quatro ventos o evangelho da “união de esquerda” e da “frente antifascista” esconde-se o fato de que, embora alguns interesses imediatos pareçam coincidir (não é do interesse do proletariado nem dos revolucionários um regime fascista), os objetivos concretos de tais frentes não apenas divergem daqueles dos revolucionários mas são antagônicos a eles. Em última instância aliar-se a estas organizações é aliar-se ao projeto burguês de sociedade, pouco importa se o discurso ideológico que adotam é mais moderado e revestido de liberalismo. Pouco importa também se os membros que compõe as frentes se auto intitulam “comunistas” ou “anarquistas”. É preciso ter em mente que quando se fala em fortalecer as “instituições democráticas” se está falando em fortalecer as instituições burguesas. Quando o objetivo é defender a democracia, se está a defender a sociedade capitalista. É essa mesma sociedade que irá combater com veemência qualquer tentativa revolucionária por parte do proletariado. Da mesma forma as frentes e uniões de esquerda combatem de toda maneira qualquer postura mais radicalizada de seus membros.
Precisamos romper com a lógica de olhar apenas o horizonte imediato, no qual tudo que se enxerga são aqueles que possuem, no momento, as ferramentas de dominação. Não há espaço para, apenas por causa das emoções que surgem diante dos absurdos do governo, abrir mão dos nossos interesses históricos, de um horizonte que aponte para outra sociedade, um horizonte revolucionário. É preciso mais do que nunca manter a crítica o mais radical possível, sem desviar para concessões reformistas. Realizar a defesa da democracia burguesa é abrir mão desse horizonte. Incentivar o proletariado e parte do bloco revolucionário a aderir a esta causa é trabalhar contra a superação desta sociedade, uma vez que se está trabalhando por sua manutenção. Não se trata de pensar que a classe proletária irá aderir ao projeto revolucionário em bloco de maneira imediata. Sabe-se dos limites do proletariado “em-si” que permanece subjugado pela ideologia burguesa e burocrática de nossos tempos. Também não se trata de desconsiderar as manifestações que surgem no Brasil como meras insurgências partidárias e reformistas. No momento o que ocorrem são revoltas espontâneas e organizadas sobre anseios comuns. Parte da população está revoltada, ainda que não tenha bem em mente contra o quê. Reconhecer os limites da consciência imediata do proletariado não significa negar o potencial concreto de sua elevação em classe autodeterminada (para-si) que será sempre uma possibilidade real enquanto existir capitalismo (consequentemente enquanto houver burguesia e proletariado). Cabe àqueles que defendem um projeto revolucionário justamente radicalizar e tencionar determinados setores, auxiliar na medida do possível o desenvolvimento deste processo. Isso inclui, também, abordar seu amigo e seu colega “antifascista” e dizer com todas as letras que ele está defendendo uma pauta conservadora. Não abrir mão da crítica e deixar claro quais os interesses por trás da ideologia do antifascismo, que é em última instância a manutenção da sociedade burguesa.
A luta contra o capital já é uma luta “antifascista”, na medida em que o fascismo é um fenômeno do capitalismo, mas ela também é uma luta “antidemocrática”. Há muito já dizia um velho barbudo alemão: “o poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia”. Nosso interesse não é manter este comitê nem lutar pelos assuntos comuns da burguesia. Nosso interesse é de superar por completo essa sociedade, de instaurar a autogestão social.
[1] Os blocos sociais são determinadas formas mais
organizadas e conscientes de parcelas de classes sociais distintas que possuem
programas e interesses comuns. Gravitam em torno do conflito das duas classes
fundamentais (proletariado e burguesia) mas não devem ser confundidos com as
mesmas.
[2] O bloco revolucionário é formado pelos indivíduos
mais avançados do proletariado e membros de outras classes sociais (geralmente
as classes desprivilegiadas) que aderem ao projeto revolucionário do
proletariado.
[3] “Igualdade, fraternidade e liberdade”. Slogan
utilizado durante a revolução francesa cujo conteúdo se dá na defesa de
supostos direitos universais que viriam a ser garantidos pela república, em
contraposição à “tirania” dos monarcas. Trata-se, historicamente, de um
discurso burguês.
[4] Destacam-se, entre tantos acontecimentos, a
construção da barragem de Belo Monte e as remoções forçadas para a realização
dos megaeventos esportivos (copa do mundo e olimpíadas).
[5] Tanto a prisão de Rafael Braga quanto a aprovação da
lei antiterrorismo curiosamente ocorreram durante o governo petista, assim como
a construção de Belo Monte e as remoções forçadas mencionadas anteriormente.
Hoje a mesma esquerda que um dia participou dessa violência de estado conclama
o combate ao fascismo.
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