segunda-feira, 22 de março de 2021

O Dia Internacional da Mulher

O Dia Internacional da Mulher

Jaciara Veiga [1]




Por que existe um dia da mulher? Qual sua verdadeira origem? O que realmente se celebrava neste dia? E quando ele deixou de ser o que suas criadoras pretendiam? Estas são perguntas pertinentes para se refletir ainda hoje.

Só existe “um dia da mulher” porque existe um problema da mulher. De fato, as mulheres nas sociedades de classes são submetidas à subordinação sob diversas formas. E, como é sabido, elas vêm lutando contra esta situação social enquanto movimento social — o movimento feminino [2] —, contra a subordinação que se manifesta na vida cotidiana, seja no trabalho, na esfera doméstica, nas relações amorosas, nas condições de vida, na cultura etc. No entanto, o movimento feminino não é homogêneo, ele é um movimento fragmentado, que possui mulheres de classes distintas, com manifestações, objetivos e pretensões diversas. Deste modo, podemos dizer que as lutas das mulheres proletárias e demais classes inferiores — que em geral, visam grandes reformas e, em suas tendências revolucionárias, a abolição do capitalismo — se diferem das disputas das mulheres burguesas e das demais classes superiores — que buscam por vantagens competitivas, tais como microrreformas, espaços de poder e decisão, cargos, possibilidade de entrada e criação de organizações burocráticas etc. [3]. Também podemos afirmar que as conquistas formais, tais como algumas vantagens conquistadas pelas “mulheres” não atingem às mulheres como um todo.

A origem do 8 de março está ligada à luta de classes, ou seja, à luta das mulheres proletárias contra sua subordinação que, assim como a exploração de seus companheiros de classe, têm origem na sociedade dividida em classes sociais. O 8 de março, o "Dia Internacional das Mulheres" [4], na realidade, nasce como um dia anual de mobilização que buscava a unidade dos trabalhadores e seus objetivos, fossem homens ou mulheres. A luta das mulheres proletárias fazia, portanto, parte do movimento pela emancipação das classes trabalhadoras em geral, associando à luta suas reivindicações especificamente femininas, deixando claro seu caráter de classe. No entanto, esta luta vem perdendo seu verdadeiro significado, foi apropriada e mercantilizada.

O 8 de março deixa de ser celebrado como um dia de luta das mulheres proletárias, perdendo seu caráter de classe e ganhando um caráter subjetivista [5], individualista, onde os interesses particulares de alguns indivíduos e de subgrupos femininos (das feministas, por exemplo) se colocam como interesses das mulheres em geral [6]. Todavia, a luta das mulheres proletárias não pode ser confundida com as disputas feministas [7], que buscam conquistas em conformidade com o paradigma hegemônico (o subjetivismo), sem apontar para a única resolução da questão da subordinação da mulher, que é a abolição da sociedade capitalista e a constituição da sociedade autogerida. Clara Zetkin [8] já havia evidenciado esta separação ao dizer que o movimento de mulheres proletárias e o feminismo são fundamentalmente diferentes. De acordo com Zetkin, as feministas buscam por reformas a favor do sexo feminino dentro da sociedade capitalista, através da luta entre os sexos e contra os homens de sua própria classe, enquanto as mulheres trabalhadoras travam uma luta de classe contra classe [9], uma luta conjunta com seus companheiros de classe para abolir o capitalismo. Esta separação também foi feita pela Alexandra Kollontai [10] ao afirmar que as feministas aspiravam aos mesmos “privilégios”, “poder”, “direito” que possuíam seus maridos, pais e irmãos na sociedade capitalista. Ao contrário das trabalhadoras, que aspiram à destruição de todos os privilégios, fossem eles de nascimento ou de riqueza. Além disso, segundo Kollontai, os interesses e objetivos entre trabalhadoras e patroas, das empregadas e senhoras são contraditórios, não sendo possível, consequentemente, uma conciliação, uma união entre ambos.

As disputas por vantagens competitivas, próprias das feministas, portanto, não passam de uma ilusão que acabam desviando as mulheres da verdadeira luta pela libertação feminina — através da luta de classes — para lutas por interesses imediatos (conquistas parciais, o que é algo irrisório, mesquinho que aponta unicamente para a reprodução da subordinação da mulher e, por conseguinte, da sociedade capitalista). Enquanto as lutas forem em prol de conquistas parciais, direitos formais e contra os homens; enquanto as mulheres se deixarem iludir por ideologemas [11] (chavões como representatividade, empoderamento, lugar de fala, vivência, sororidade etc.), ideologias e doutrinas feministas e, enquanto não reconhecerem que as raízes de sua subordinação são oriundas das sociedades de classes, orientando, assim, o movimento no sentido de uma articulação entre os interesses do proletariado e os interesses especificamente femininos com prioridade para o primeiro, não haverá uma transformação radical na situação das mulheres, logo, não teremos uma libertação das mulheres em geral, nem da humanidade [12].

A luta continua, e nós mulheres não podemos nos iludir com discursos sobre igualdade entre todas as mulheres, com discursos superficiais acerca da importância das mulheres e do dia das mulheres etc. A libertação da mulher, bem como de toda a humanidade pressupõe uma transformação total e radical das relações sociais existentes, ou seja, pressupõe a abolição do capitalismo e a instauração da sociedade autogerida. A luta das mulheres das classes trabalhadoras continua sendo ao lado de seus companheiros de classe, em associação com mulheres e homens que lutam pela transformação radical desta sociedade que gera a subordinação da mulher e demais expressões da miséria reinante no capitalismo. As mulheres só serão totalmente livres quando toda a humanidade for livre [13]. Sigamos na luta contra o capitalismo e pela autogestão social!


Notas:
[1] Socióloga e militante autogestionária.
[2] “O movimento feminino é um movimento social caracterizado pela mobilização das mulheres (através de diversas formas: produção intelectual, manifestações, reivindicações sob diversos meios, se manifestando contra determinadas situações específicas, como a inexistência do voto feminino, a liberdade corporal, a desigualdade no trabalho, a opressão, o sexismo, etc.), mostrando assim sua insatisfação em relação a determinada situação social específica e desenvolvendo senso de pertencimento e objetivos” (Movimento Feminino e Feminismo, Marcus Gomes).
[3] “O feminismo é expressão da classe burguesa em oposição ao movimento feminino revolucionário, cuja expressão é a da classe operária. Seu objetivo implica uma emancipação particular (somente das mulheres), uma vez que afirma que o agente da libertação da opressão é o próprio indivíduo oprimido. Logo, a libertação das mulheres seria obra das próprias mulheres. A tentativa de associar a luta da mulher trabalhadora à luta feminista, não passa de uma estratégia que desvia da luta de classes, negando o proletariado como único agente histórico revolucionário” (Cf.: Como assim você não é feminista?).
[4] “O Dia Internacional da Mulher foi proclamado pela Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, celebrada em Copenhague, em 1910. O convite à mesma já deixava claro seu caráter de classe: “Convidamos urgentemente a todos os partidos socialistas e organizações de mulheres socialistas, assim como a todas as organizações de trabalhadoras baseadas no princípio da luta de classes a enviar suas delegadas, ou inclusive seus delegados, a esta conferência” (Cf.: As origens socialistas do Dia Internacional da Mulher).
[5] O dia das mulheres é ressignificado pelo paradigma subjetivista (ou subjetivismo). “O subjetivismo é um paradigma que coloca o sujeito como eixo fundamental da análise e que se desdobra na ideia de pluralismo (ou diferença, entre outros nomes possíveis) do sujeito cognitivo, fragmentação da realidade e saber fragmentado. [...] O subjetivismo, como paradigma, é um processo mental subjacente que tem como eixo fundamental o sujeito (individual ou coletivo) e este é compreendido como plural, pois concebe a realidade como fragmentada" (Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas, Nildo Viana, 2019).
[6] “A emergência das ideologias feministas acabou criando uma confusão entre movimento feminino e feminismo e, como consequência, a transformação de toda luta ou ideia favorável às mulheres em “feminismo” (Movimento Feminino e Feminismo, Marcus Gomes).
[7] “O feminismo se coloca como representante dos interesses das mulheres como um todo, mas, na verdade, representa os interesses das mulheres das classes superiores. Apesar de estar ligado ao movimento das mulheres em geral, o feminismo é uma concepção ambígua (que pode se manifestar sob a forma de ideologia, doutrina ou representações) que diz representar os interesses das mulheres como grupo social em sua totalidade, mas no fundo, representa os interesses individuais, setoriais ou das mulheres de determinadas classes sociais. Não é possível, portanto, falar em um movimento unitário das mulheres em uma sociedade dividida em classes sociais” (Como assim você não é feminista?).
[8] As Origens Socialistas do Dia Internacional da Mulher.
[9] "[...] classe contra classe deve ser a linha mestra da luta pela libertação da humanidade em geral, e da mulher em particular. Somente uma vitória revolucionária sobre o capitalismo, dirigida pelos homens e mulheres trabalhadoras e apoiadas por todos os oprimidos, pode resgatar as mulheres de seu estado de opressão e garantir-lhes uma vida melhor numa nova sociedade. [...] Não importa quão radical possa parecer; a substituição da luta de classes pela luta entre sexos, por parte das mulheres ativistas, seria um perigoso desvio do verdadeiro caminho da liberação. Esta tática somente poderia servir ao jogo dos piores inimigos das mulheres e da revolução social (Sexo contra sexo ou classe contra classe, Evelyn Reed).
[10] Alexandra Kollontai: o dia da mulher.
[11] “Um ideologema é um fragmento de uma ideologia, seja um construto (falso conceito) isolado, seja uma parte mais ampla ou uma síntese simplificadora de uma determinada concepção ideológica ou, ainda, a redução de uma ideologia a um chavão ou uma ideia-chave. Em outras palavras, um ideologema é uma mutação formal de uma ideologia no sentido de promover sua simplificação e redução, transformando um fragmento da mesma em mensagem ou elemento principal de um discurso, texto, mensagem, etc.” (Sobre ideologema e ideologia).
[12] “Apesar do feminismo ter mais destaque e hegemonia entre as mulheres das classes superiores, assim como nos meios acadêmicos e de comunicação e suas exigências aparentemente serem radicais, não se deve perder de vista o fato de que as feministas não podem e não querem, devido aos seus interesses de classe, lutar pela transformação radical da sociedade, sem a qual a libertação das mulheres não se efetivará” (Como assim você não é feminista?).
[13] Marxismo e a Questão da Mulher, Karl Jensen.

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