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sábado, 29 de agosto de 2020

Voto Nulo Autogestionário e Coerência Revolucionária



VOTO NULO AUTOGESTIONÁRIO E COERÊNCIA REVOLUCIONÁRIA
Rubens Vinícius da Silva 

        Num momento marcado pela irracionalidade, moralismos e quase total falta de disposição para leituras e reflexões, inicio este pequeno texto afirmando de antemão que existem distintas formas de voto nulo¹. Uma delas em especial aponta para a crítica total da sociedade capitalista e suas instituições: refiro-me à luta pelo voto nulo autogestionário. A luta pelo voto nulo autogestionário que o Movaut - Movimento Autogestionário defende coloca que este se trata de um momento (um meio) para um objetivo final (um fim último). Dessa forma, a crítica radical dos partidos e da democracia burguesa é um meio, uma expressão coerente da luta pela sociedade autogerida que é o objetivo final da luta pelo voto nulo autogestionário.

        Logo, não se trata de uma questão conjuntural ou imediata: inclusive, a polarização burguesa atual (focada numa recusa acrítica à figura individual do presidente e seus aliados, o que aponta para o reforço da ilusão eleitoral) tem levado muitos indivíduos honestos a adotarem o voto no mais ou menos “ruim”, perpetuando e reforçando as ilusões de um “salvador” da política institucional no capitalismo. Obviamente que toda esta nuvem de fumaça é de interesse da burguesia e das suas classes auxiliares, incluindo aí os burocratas de partido que aspiram ou ascendem aos cargos no poder estatal, que é o poder político burguês. Isso oculta o fato de que todos os governos no capitalismo existem para manter intocáveis as relações de exploração e dominação de classe e demais relações sociais, que são relações entre classes, marcadas pela luta de classes.

        Os governos do PT (que inclusive nos dois mandatos de Lula, foram apoiados pelo então deputado federal Bolsonaro e o partido que na época fazia parte, o PP) assim como os governos antes e pós-PT foram e serão os fieis serviçais da exploração e dominação capitalista. Não importa em qual das instâncias (municipal, estadual e federal), os governos e seus opositores de plantão continuarão criminalizando a luta das classes trabalhadoras – do proletariado em especial – e setores contestadores quando estas saírem de seu controle. Seja sabotando greves selvagens e lutas autônomas, seja minando as expressões políticas e organizações do proletariado revolucionário.

       Todos os governos servem a este propósito: garantir as condições necessárias para a reprodução das relações sociais capitalistas. São os agentes reais do estado capitalista, a associação que faz valer os interesses comuns e os negócios das distintas frações da burguesia. Claro que há especificidades nacionais e regionais em cada governo e instância (municipal, estadual, federal) ao longo da história do capitalismo. Mas isso não invalida o fato de que a mutação formal e especificidade local carregam consigo a permanência do essencial: fazer valer os interesses e cumprir as tarefas políticas e econômicas da classe capitalista.

       Se ficarmos nesses maniqueísmos, chavões e adjetivos (o que só evidencia a miséria intelectual, psíquica e cultural reinante na sociedade brasileira) do político, partido, governo X ou Y continuamos a perder de vista a totalidade e os interesses de classe do proletariado, a classe revolucionária da sociedade capitalista. Isso porque todos os partidos políticos (e dentro deles quem manda é a burocracia partidária) são organizações que reproduzem a divisão social do trabalho no seu interior e têm como objetivo conquistar o poder estatal.

      E isso significa amortecer a luta de classes e a luta proletária em especial, impedindo ou então cooptando as formas organizacionais das classes inferiores, setores contestadores e, por conseguinte, do proletariado: isso porque quando esta classe se autonomiza e expressa seus interesses imediatos e históricos, avança da busca por melhores condições de vida nas relações de produção capitalistas para a luta pela abolição destas mesmas relações de produção e suas formas sociais correspondentes.

        A história das lutas demonstra que toda vez que o proletariado e as classes inferiores conseguiram concessões da classe capitalista foi com base numa luta encarniçada, e inclusive contra os partidos: o caso recente no Brasil talvez possa não evidenciar este processo, mas as formas organizacionais criadas historicamente pela classe operária mundo afora foram aqui inspiração para a ação por setores contestadores², em especial no início deste século XXI.

       Em síntese, a luta pelo voto nulo autogestionário (luta, pois se vincula ao objetivo final, que é a autogestão social, e não uma simples campanha) difere das demais formas de voto nulo, pois: a) não visa anular as eleições e sim criticar a democracia burguesa, o processo eleitoral e a sociedade capitalista como um todo; b) não se dirige como oposição aos candidatos e aos partidos do momento e sim faz a denúncia da burocracia partidária em geral, explicita seus vínculos com a reprodução do capitalismo e propõe a constituição de novas formas de organização, antagônicas aos partidos políticos; c) faz parte do processo mais amplo de luta pela superação do capitalismo, do qual a democracia burguesa, os partidos e o sistema eleitoral são partes integrantes. Dessa maneira, não se trata de uma atitude individual isolada, mas antes de um momento constitutivo do processo de luta mais amplo: a luta pelo voto nulo autogestionário faz parte da luta pela autogestão social, pois está articulada ao projeto revolucionário e à classe revolucionária de nossa época, o proletariado.

        Assim, o voto nulo autogestionário é a ferramenta de luta contra a democracia burguesa e uma forma de demonstrar que somente através da autonomização do proletariado será possível combater radicalmente o conjunto das relações sociais capitalistas. Tal processo precisa se articular com as demais lutas nas demais esferas da vida social, generalizando novas relações sociais, superiores àquelas que os entusiastas da democracia e do voto se esforçam em legitimar visando seguir como classe auxiliar da burguesia. Votemos nulo: lutemos pela autogestão social!

Notas:


¹ Dependendo de cada eleição e ressaltando que no Brasil o voto consiste numa obrigatoriedade, há aqueles que votam nulo por não se sentirem “representados” pelos candidatos, assim como há quem vote nulo por orientação partidária específica, quem vota nulo visando anular o pleito eleitoral, dentre outras formas. Assim, a luta pelo voto nulo autogestionário difere destas manifestações individuais ou então coletivas que não apontam para a denúncia da sociedade capitalista e para a articulação entre a crítica do processo eleitoral, dos partidos e da democracia burguesa em sua totalidade com a luta pela superação do capitalismo via revolução autogestionária. Sobre isso, ver a edição especial da Revista Enfrentamento lançada em 2010 e dedicada exclusivamente ao processo eleitoral, à farsa da democracia burguesa e às alternativas propostas. 

² Aqui nos referimos às lutas que emergiram contra o aumento das tarifas de transporte coletivo durante a primeira década deste século, bem como àquelas que se desenvolveram na forma de ocupações de escolas durante os anos 2010. A este respeito conferir Maia (2016). 

Referências


REVISTA ENFRENTAMENTO, n. 8, jan./jul. 2010. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/enf/issue/view/Revista%20Enfrentamento%20N%C2%BA%208/showToc. Acesso em 26 de agosto de 2020.

MAIA, Lucas. Nem partidos, Nem Sindicatos: a reemergência das lutas autônomas no Brasil. Goiânia: Edições Redelp, 2016. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CONTRA OS PARTIDOS E SINDICATOS


CONTRA OS PARTIDOS E SINDICATOS


Rubens Vinícius da Silva


Escreveu Marx (1977, p. 3, itálico no original) na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel [1843]: "Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade: no dia do seu enterro". Qual a relação entre este fragmento e o modo como os partidos e sindicatos buscam se relacionar com as classes inferiores e setores contestadores da sociedade moderna?

A resposta a tal questionamento nos remete ao seguinte: nunca é demais lembrar que todos os burocratas de partidos e sindicatos são "pelegos[1]", sejam eles ocupantes ou aspirantes, conservadores ou progressistas. A burocratização e mercantilização destas duas formas organizacionais é algo irreversível; a relação entre dirigentes e dirigidos que as fundamenta é uma das relações sociais fulcrais das sociedades classistas.

Os seus interesses enquanto fração de classe auxiliar da burguesia (a classe dominante no capitalismo) consistem em impedir que as classes inferiores superem estas formas burocráticas de organização, que ironicamente foram criadas pela classe operária e há mais de um século servem para a reprodução e consolidação do capitalismo. A história do movimento operário está repleta de exemplos onde os partidos e sindicatos foram os principais agentes da contrarrevolução, ao lado da classe capitalista e das suas classes auxiliares.

Dentre outras formas, a miséria contemporânea do bloco progressista[2] se manifesta no desespero eleitoral e na necessidade de controlar, amortecer ou cooptar as formas de auto-organização das classes inferiores e setores contestadores da sociedade capitalista. Do mesmo modo, pode ser observada na busca incessante por legitimar a necessidade da organização sindical (seja nas direções ou nas patéticas "oposições de luta", que só servem como justificativa para ascender à burocracia sindical e manter a apatia e passividade das "bases"), a qual também há mais de um século se revela uma forma de organização antagônica à luta pela autoemancipação humana.

Ambas as organizações são fundadas numa rígida e complexa divisão social, reproduzindo o capitalismo no seu interior. No interior destas organizações emerge um conjunto de funcionários especializados, os quais passam a possuir interesses próprios, vinculados à sua autorreprodução enquanto fração da burocracia. Ao lado disso, os burocratas de partidos e de sindicatos promovem um processo de autovaloração, enaltecendo suas ações com o fim de justificar sua existência. Tal processo caminha em conjunto com o processo de simulação-dissimulação: os burocratas partidários e sindicais do bloco progressista dizer representar os interesses das classes trabalhadoras, mas na verdade estão perseguindo seus interesses enquanto fração de classe auxiliar da burguesia. Desta forma, podemos afirmar que os partidos são estados em potencial e os sindicatos são organizados nos moldes da democracia burguesa, uma das mais sutis ideologias e formas de dominação de classe.

Os partidos políticos só têm um objetivo: tomar o poder e exercê-lo. Os sindicatos possuem horror às relações de produção comunistas, pois a autogestão social significa o fim de sua existência. O proletariado revolucionário e seus aliados têm interesses maiores e mais urgentes: a sua libertação, na forma de criação, generalização e articulação da autogestão de suas lutas, determinação fundamental para a autoemancipação humana.


Referências

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.

SILVA, José Santana.  Sindicalismo: da expectativa revolucionária à conformação burocrática. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020.

VIANA, Nildo. Blocos sociais e lutas de classes. Revista Enfrentamento, ano 10, n. 17, jan/jul. 2015. Disponível em: https://redelp.net/revistas/index.php/enf/article/view/960/830



[1] Na tradição do sindicalismo brasileiro, termo que caracteriza as direções sindicais que explicitamente buscam conciliar os interesses entre a classe capitalista e determinada fração das classes trabalhadores. Sobre o processo de burocratização do sindicalismo, que sepultou de modo inevitável quaisquer expectativas revolucionárias a respeito desta organização, consultar Silva (2020).

[2] Os blocos sociais são as formas mais organizadas, conscientes e ativas das classes sociais (não devendo ser confundidos com estas), no caso das classes fundamentais (burguesia e proletariado), ou de seus setores mais autonomizados, no caso da burocracia e seus aliados. O bloco progressista reúne frações da burocracia partidária e sindical popularmente conhecidos como “de esquerda”, ou seja, os setores destas frações de classe que dizem “representar” os interesses do proletariado e demais classes inferiores. Acerca dos blocos sociais, conferir o texto Blocos sociais e luta de classes, de Nildo Viana, publicado na Revista Enfrentamento, ano 10, n. 17, jan/jul. 2015. Disponível em: https://redelp.net/revistas/index.php/enf/article/view/960/830.

sábado, 14 de abril de 2018

REFLEXÕES AUTOGESTIONÁRIAS 04: LULA E A LUTA REVOLUCIONÁRIA


Reflexões Autogestionárias 04:

LULA E A LUTA REVOLUCIONÁRIA

Matheus Almeida

A análise da realidade social é um processo valorativo, que tanto carrega valor quanto produz valoração. Tais valores geralmente são apresentados em lados opostos, que se opõem entre si, o que seria reflexo da oposição política entre seus defensores. A consequência mental imediata deste tipo de raciocínio é uma espécie de maniqueísmo político, onde, de um lado, haveria os conservadores (defensores dos valores e políticas conservadoras), e do outro, os progressistas (por sua vez, defensores dos valores e políticas progressistas).
Acontece, porém, que esta polarização apresentada é um fenômeno ilusório, colocando-se como se pudesse cindir e resumir todo e qualquer posicionamento político existente a esta dicotomia (variando-se, no máximo, distinções entre moderados ou extremados em cada lado). O que esta dicotomia esconde é que ela expressa duas faces do capital, dois lados de uma mesma moeda. Conservadores e progressistas são, política ou valorativamente, variações de posições no interior do capitalismo. A história de Lula e do PT, mais do que nunca, é expressão exemplar desta afirmativa. Uma reflexão mais ampla neste sentido já seria o suficiente para esclarecer a tragédia do petismo.
O princípio básico da dominação de uma classe sobre as outras é apresentar seus interesses particulares como se fossem universais. Obtendo sucesso nesta empreitada, tal classe consegue apoio para realizar sua dominação, através da conquista do poder do Estado e do modo de produção dominante. A lógica dos partidos políticos não é tão diferente. Cada partido se esforça para apresentar e convencer a maioria da população de que seus interesses particulares são universais. Isto é fundamental para a conquista e manutenção do poder, seja através de uma via democrática ou ditatorial.
No entanto, o interesse particular de nenhum partido (e todos os partidos possuem interesses próprios) é universal, mas são interesses específicos de classe. Melhor dizendo, são interesses particulares de uma classe ou frações de classe, que disputam entre si pelo poder. As disputas entre partidos são disputas interburocráticas, e não luta entre classes. Cada partido político busca se distinguir e se destacar na disputa frente aos demais partidos, e nesta busca reforça suas diferenças (de coloração, de valores, de candidatos, de programas etc.) e podem chegar até mesmo a se digladiarem em determinados momentos (eleitorais ou pré-eleitorais, em geral).
O barulho que fazem em suas disputas internas, por vezes, soa tão alto e voraz que nos convence de que são inimigos de classe batalhando ou representantes de sociedades radicalmente distintas em conflito. Não o são, e jamais serão. A marketização das distinções entre partidos conduz nossos olhares a não ver as radicais similitudes entre eles, que são determinadas por seu caráter de classe comum (a burocracia, que no caso dos partidos da burguesia é subordinada, e que no caso dos partidos de outras classes é soberana).
Todo partido político almeja o poder do Estado (que nunca é demais lembrar, é um aparato do capital). Para conquistar o poder do Estado, o partido deve fazer passar seus interesses particulares como universais. Neste objetivo, deve convencer tanto as classes trabalhadoras (sejam trabalhadores manuais ou intelectuais, que juntos são a maioria da população), como principalmente a classe dominante no capitalismo: a burguesia.
O poder da burocracia não se exerce sem a anuência da burguesia. Isto porque os burocratas são seus funcionários, são a principal classe auxiliar da burguesia.
Os maiores extratos da burocracia governamental não são eleitos (ou postos à força com um golpe de Estado) sem o apoio da burguesia. Com exceção de situações de tentativas de revoluções burocráticas ou de processos eleitorais conturbados, as condições materiais de elevação de um burocrata partidário a burocrata governamental são o apoio político e financeiro da burguesia. O tamanho da campanha de um candidato, o discurso que é aceito, os acordos com empresas, os conchavos político-partidários, o programa de governo, a recepção do capital comunicacional, entre diversos outros elementos são determinados pela relação de maior ou menor aceitação ou rejeição que tem a burguesia com relação a uma candidatura a burocrata estatal. Não há antagonismo entre o Estado (ele como um todo ou seus representantes) e a burguesia: aquele deriva da dominação desta, e perpetua tal dominação.
Assim, as disputas fratricidas entre os partidos e seus representantes exaltam suas diferenças conjunturais, mas ocultam suas semelhanças essenciais: são duas faces (conservadores ou progressistas) do poder político capitalista. Os distintos projetos entre um partido e outro são elegidos a partir da necessidade histórica que o capitalismo tem para determinado momento de um determinado país. Estas necessidades históricas, portanto, é que configuram a forma estatal de determinada época e, consequentemente, as formas governamentais que ali se estabelecem. A forma estatal do período histórico do capitalismo que vivemos (desde a década de 1980) é o neoliberalismo. Todos os governos de distintos partidos que se estabeleceram no Estado neste período produziram variações governamentais sob o/do neoliberalismo à brasileira. E com os governos do PT não foi diferente.
A longevidade dos governos petistas se deveu à combinação entre neoliberalismo e neopopulismo, que gerou relativa estabilidade política e econômica durante quase uma década (2003-2013), mas que se esgotou em seus próprios limites. Foi com o esgotamento deste formato governamental, expresso, por um lado, no prejuízo crescente à acumulação ampliada de capital (que desembocou na crise pecuniária), e por outro lado, na dificuldade cada vez maior em controlar e amortecer os conflitos sociais (evidenciada em Junho de 2013), que a paciência e o apoio da classe dominante ao PT cedeu às iniciativas (frustradas enquanto vivíamos a "estabilidade" dos primeiros anos de governo de Lula) organizadas do antipetismo.
O crescimento da força do antipetismo foi proporcional ao decrescimento da popularidade que as políticas petistas passaram a adquirir. Lula e Dilma avançaram uma agenda neoliberal no Brasil como nunca antes na história desse país. Baseados na ideologia da conciliação de classes, tentaram governar para todos, para uns mais que para outros. Os petistas carregam afixado na memória os números que principalmente os governos Lula tiveram, que representaram uma tentativa de solução neoliberal para o problema neoliberal de miséria extremada levado a cabo pelos governos precedentes.
Se a insustentável miséria material de muitos foi reduzida durante o governo petista, que se iniciou em uma etapa de avanço e expansão da acumulação capitalista (o que gerou maior "riqueza nacional"), as miseráveis consequências do neoliberalismo igualmente foram garantidas. As mesmas políticas petistas, somadas à acumulação de capital do momento, que geraram a elevação de consumo e renda de parte da população também geraram o maior fosso entre a riqueza concentrada nos 1% mais rico da população e a riqueza que todo o restante do país possuía. Ninguém se beneficiou mais das políticas petistas que os mais ricos.
Em meio à histeria coletiva que se instaura entre os progressistas neste momento, de que estamos prestes a viver o fim dos tempos, de que a ditadura e o fascismo de repente apareceram com força por aí, pensar a gênese deste avanço conservador nos impõe ter que ver as próprias políticas petistas na criação do monstro (e de seu espantalho) denunciado. Lula, Dilma e o PT empurraram medidas que nem mesmo a ditadura militar foi capaz de executar, como a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Aliás, para os indígenas, os últimos governos petistas acarretaram, por conchavos e conivências, no acirramento dos conflitos por terras de forma exponencial no Brasil. Desde a ditadura, nunca havia se demarcado tão poucas terras indígenas como no governo Dilma.
O neopopulismo petista gerou a cooptação e o aparelhamento de diversas organizações dos movimentos sociais no Estado, reduzindo-as a correias de transmissão do governo. A capacidade de mobilização e enfrentamento dos trabalhadores foi diretamente impactada pela subordinação de suas atividades aos interesses do partido dirigente das organizações de categorias e de seu vínculo com o governo. A desarticulação do movimento operário se fez evidente, pois não interessavam mais as greves gerais (menos ainda aquelas autônomas e selvagens), mas tão somente as "mesas de negociação" entre seus "representantes" e o Estado.
Os governos do PT, ao seguirem a cartilha neoliberal, lançaram para os pobres, os trabalhadores, os movimentos e militantes as armadilhas que seriam futuramente utilizadas contra eles mesmos: o controle e a repressão do Estado Penal. Aumenta-se a vigilância, declara-se que os seus opositores mais radicais são terroristas, eleva-se os poderes do judiciário, fortalece-se os aparatos militares, negocia-se intimamente com os conservadores de toda ordem. Os rumos desta história foram traçados com as diretrizes progressistas.
A expansão do genocídio negro, a militarização da vida cotidiana nas favelas, o avanço do encarceramento em massa, a criminalização dos movimentos sociais e militantes divergentes são alguns dos elementos do pan-penalismo que os governos petistas reforçaram no Brasil. Nenhuma destas práticas ameaçava a democracia – pensavam corretamente os petistas, pois não dificultavam o andamento da democracia eleitoral burguesa, aquela que desperta libido aos partidos.
Durante os anos dos governos petistas, as lutas de classes se expressaram aí, no avanço do Estado e do capital contra as classes trabalhadoras e grupos oprimidos e nas suas reações, e não nas querelas dos partidos. As querelas entre os partidos, como sempre, tinham como efeito principal retirar o foco da luta de classes existente durante o governo progressista do PT deslocando-o (ideologicamente) para os embates partidários.
Lula fortaleceu as instituições capitalistas, renovou a credibilidade em baixa dos aparatos estatais, e deu início ao processo de enfraquecimento e desarticulação das lutas sociais autônomas. Os resultados destas medidas foram o fortalecimento do bloco dominante, das forças conservadoras, e o isolamento do próprio petismo de suas antigas bases. A dinâmica da institucionalidade burguesa nunca foi controlada pelo PT, apesar destes partidários se iludirem com tal crença, ela apenas adotou este partido para se legitimar e se revigorar.
Quando o PT passou a não interessar mais à classe dominante, a própria institucionalidade burguesa (arvorada pelo PT) foi utilizada para expurgar tal partido do poder executivo, através do impeachment. Logo, diferente do que falam os progressistas defensores da ideia de que houve um "golpe" contra Dilma, não foi preciso a ruptura da própria dinâmica da institucionalidade burguesa para retirar o PT da presidência, o que é uma prática frequente do capitalismo em tantas outras ocasiões pelo mundo (e mesmo no Brasil, como foi com Fernando Collor de Melo).
Lula acreditou nas instituições porque o PT é parte das instituições, segue a lógica capitalista-burocrática, e Lula era um de seus grandes dirigentes (consecutivamente burocrata sindical, partidário e estatal). Daí suas medidas para empoderar os aparatos estatais. Pelo discurso petista, parece que apenas agora descobriram que os militares e o judiciário estão a serviço do poder. Ora, eles já não estavam antes, durante a própria vigência do petismo? A diferença da crença petista para a realidade é que estes aparatos não estão a serviço do poder do partido governante (que no caso, era o PT), mas sim do poder do capital, que é a relação social desenvolvida pela burguesia e que determina a dinâmica do Estado.
Isto é explicitado quando observamos que cinco dos seis ministros do Supremo Tribunal Federal que votaram a favor da prisão de Lula foram indicados a estes cargos pelos próprios governos petistas. O feitiço se volta contra o feiticeiro, que o conjura achando poder controlá-lo. O PT abriu mão do enfrentamento até quando poderia convencer a tal ação os ingênuos defensores de uma suposta "guinada à esquerda" deste partido, em diversas ocasiões, inclusive na derradeira prisão de Lula.
Em verdade, foi exatamente o contrário o que ocorreu: enquanto as viúvas de Lula choravam a sua prisão durante o seu comício, e vários falavam para "convocar uma greve geral", os dirigentes petistas (e de suas organizações correias de transmissão: CUT, MST, UNE e similares) diziam que era preciso "acumular forças", o que é outro nome para dizer não ao enfrentamento e reafirmar as querelas interburocráticas (entre partidos, e entre dirigentes partidários e burocracia judicial). O espanto não é tal resposta dos dirigentes petistas e para-petistas, mas sim a surpresa de quem acreditava que a resposta poderia ser diferente.
Lula foi preso. O PT está em derrocada final. A esquerda em migalhas. O progressismo no Brasil, tal como em outras partes do mundo, teve seus dias de glória enquanto havia crescimento da acumulação de capital, mas tão logo este reduziu, viu-se consecutivamente enfraquecido pelo conservadorismo em ascensão. Os partidos, movimentos e intelectuais progressistas se desesperam, todas as "conquistas" (sic) parecem estar indo água abaixo. Se um novo partido de esquerda não chegar ao poder do Estado será o fim, proclamam. Os interesses particulares são anunciados, outra vez, como universais, esperando algum retorno amplo das "massas". Nenhuma luta a favor dos trabalhadores virá deste espetáculo fratricida.
Do ponto de vista dos trabalhadores, nenhuma mudança substancial haverá entre os governos neoliberais de esquerda fracassados e os governos neoliberais de direita em ascensão. O saldo do Estado para estas classes será o mesmo: austeridade, exploração, dominação, controle, repressão, opressão. O petismo cumpriu o interesse do capital para o Brasil, foi descartado por seus ex-apoiadores, e agora o capital fará cumprir seus interesses com outros partidos. A única possibilidade de se evitar isto não é a ressurreição do moribundo petismo, mas a afirmação, consolidação e generalização da força política radicalmente distinta: a revolucionária.
O antagonismo fundamental existente no Brasil e no mundo não é entre conservadores e progressistas, mas sim entre proletariado (a classe revolucionária da era capitalista, onde reside o ponto de vista revolucionário) e burguesia (a classe dominante, que juntamente com suas classes auxiliares podem se alternar entre conservadores ou progressistas). A condição de possibilidade de impedir o avanço do capital, à esquerda ou à direita, não é o endosso a algum dos lados das querelas de partidos, mas o reforço da posição e perspectiva revolucionárias diante das lutas de classes em curso no país. Para os trabalhadores, apenas a auto-organização, a radicalização das suas lutas, com a autogestão dos locais de trabalho, de estudo e de moradia, no enfrentamento ao Estado e demais organizações burocráticas (como os sindicatos e partidos políticos), assim como na negação do capitalismo, é que podem representar uma resposta autêntica destas classes trabalhadoras frente às artimanhas da dominação e exploração capitalistas.
Para os revolucionários, Lula é um inimigo de classe tragado pela dinâmica institucional burguesa. Outros inimigos de classe virão, e serão dispensados no interesse do capital, para dar lugar a novos inimigos. Se preciso, formas governamentais mais democráticas ou ditatoriais serão alternadamente elegidas pela burguesia. Em todas elas, a luta revolucionária encontrará obstáculos e necessitará romper com as ilusões da conciliação (outro nome para dominação) de classe e da redoma eleitoral dos partidos. Nem a via dura, nem a via suave da dominação pode interessar: a abolição do Estado e do capital é a única resposta, na conjuntura e para além dela, radical e realista.

"O povo, contudo, não terá a vida mais fácil quando o porrete que o espancar se chamar popular" (Bakunin)

"Dirigidos por nossos pastores, encontramo-nos apenas uma vez em companhia da liberdade: no dia do seu enterro" (Marx)